O Ministério das Relações Exteriores aguarda que, ainda nesta semana, os demais países do Mercosul respondam à contraproposta elaborada pelo Brasil – que ocupa a presidência temporária do bloco – para o acordo comercial com a União Europeia (UE).
Em julho deste ano, o país finalizou os debates internos sobre o documento de resposta aos europeus, que solicitaram, em um texto adicional em março, medidas consideradas "duras e difíceis", segundo o ministro Mauro Vieira, ao bloco sul-americano.
A nova proposta europeia, que se coloca mais rígida em relação ao meio ambiente, cria o que o chanceler chamou de "série de barreiras", com possibilidade de retaliações e sanções ao Brasil baseadas em uma legislação ambiental "extremamente rígida". Nessas "barreiras", encontram-se medidas consideradas "protecionistas", que priorizam a proteção do mercado interno europeu.
Na contrapartida brasileira, que aguarda resposta dos demais membros do Mercosul, as questões ambientais levantadas pelos europeus são abordadas, mas com possibilidades de renegociação sobre o ponto que trata de maior abertura aos países estrangeiros em relação às licitações públicas no Brasil.
A contraproposta também aumenta a proteção da indústria nacional em alguns campos, como nas compras de insumos que devem abastecer o Sistema Único de Saúde (SUS).
Em julho, durante a Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) e líderes da União Europeia em Bruxelas, na Bélgica, o presidente Lula (PT) afirmou que a "Europa tinha feito uma carta agressiva", e que o documento era "inaceitável". "Dois parceiros estratégicos não discutem com ameaças", frisou.
Preocupação ambiental
Segundo o bloco europeu, um dos entraves no acordo é o uso de agrotóxicos, a princípio incompatíveis com os padrões de sustentabilidade adotados na região. O Parlamento Europeu também aprovou, em abril deste ano, uma norma que proíbe a venda no continente de produtos que tenham origem no desmatamento em florestas. A questão ambiental – imprescindível para o governo Lula, fundamental para a União Europeia – tem sido o grande empecilho.
Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), as diferentes visões acerca do meio ambiente – à época mais predatórias por parte do governo brasileiro, com Ricardo Salles (PL-SP) à frente do Ministério do Meio Ambiente – fizeram com que as negociações fossem paralisadas.
"O acordo já estava basicamente acertado desde o governo de Michel Temer, e não foi levado adiante pelo governo Bolsonaro e pelos países europeus justamente por causa da questão ambiental", avalia Leonardo Rossatto, cientista social pela Unicamp, mestre em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC e doutorando em Ciências do Sistema Terrestre pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
"O governo Bolsonaro se recusava terminantemente a fazer qualquer espécie de acordo que implicasse na necessidade de preservar o meio ambiente", diz Rossatto, que também divulga ciências humanas por meio do perfil nas redes sociais "Nada Novo no Front".
Com Lula pela terceira vez à frente da presidência do Brasil, o acordo parece ter encontrado um momento ideal, e talvez único, para que seja efetivado. "Quando sai Bolsonaro e entra Lula, além de se ter uma saída do governo que não queria uma solução do ponto de vista ambiental, entra um outro governo que busca como uma de suas bandeiras na política externa um protagonismo na área ambiental", explica Leonardo Rossatto.
A França de Emmanuel Macron, contudo, defende que a parceria com o Mercosul não deve ser implementada sem garantias sólidas acerca do cumprimento do Acordo de Paris, o tratado internacional sobre mudanças climáticas adotado em 2015.
O Brasil, que estabeleceu suas próprias metas quando assinou esse acordo, se comprometeu recentemente com a eliminação do desmatamento ilegal na Amazônia até 2030.
O mandatário da Espanha, Pedro Sánchez, atual presidente do Conselho do bloco europeu, foi assertivo na abertura da Cúpula da Celac-UE, corroborando a brecha que as regiões parecem ter encontrado: "após mais de 20 anos de negociações, acreditamos que agora temos uma janela de oportunidade", disse.
Mas, na prática, o protecionismo está em ambos os lados. "É evidente que existe um jogo ali de protecionismo seletivo – no caso da França, que protege os seus pequenos agricultores, no caso do Brasil, que quer proteger a sua indústria", avalia André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutor em Economia do Desenvolvimento pela Universidade de São Paulo (USP).
O contexto geopolítico atual também oferece peculiaridades para que o acordo avance. "Existe, então, todo um jogo que é dinamizado por interesses comerciais, mas também motivado pela conjuntura geopolítica", afirma.
Desglobalização e "ordem neoliberal"
À primeira vista, a vontade de barrar a influência da China na região sul-americana norteia a visão europeia. André Roncaglia destaca que, após ascender "como uma potência econômica, regional e começar a ameaçar os interesses europeus aqui na região", a China demonstrou sua influência global na pandemia de Covid-19, quando outros países, inclusive europeus, evidenciaram suas "dependências" com a gigante asiática.
Barrar a China também é um sinal de que "existe uma mudança geopolítica muito importante em movimento", diz o professor da Unifesp. Essa "mudança geopolítica" trata-se de um "processo de desglobalização", acelerado pela crise sanitária, que ganha força junto a um fortalecimento da extrema direita mundo afora.
"Muita gente achou que aqui fosse um caso isolado, por causa do bolsonarismo, mas isso é uma corrente global meio cíclica na história recente do capitalismo", ressalva.
"Toda vez que há um processo de estagnação ou de desaceleração econômica, eventualmente agravada por um choque nos mercados financeiros, ou por uma crise ambiental ou uma crise sanitária, como vimos, o resultado esperado é exatamente a emergência desse discurso de ódio que faz a idolatria de líderes fortes", explica.
"Eles buscam resolver por meio de uma correção violenta ou forçosa um sistema que, na visão da população, não está mais dando resultado para eles", pontua.
Paolo Gerbaudo, sociólogo italiano autor de "O Grande Recuo: A política pós-populismo e pós-pandemia", corrobora a visão da desglobalização – é esse fenômeno que, grosso modo, ele chama de "recuo".
"As velhas certezas da globalização neoliberal, a ideia do mundo unido sob um mercado comum e de intercâmbios globais cada vez mais descomplicados, via internet e mercados financeiros, entraram em questionamento", escreve o autor do livro publicado no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Érico Assis.
Esse movimento, defende Gerbaudo, trata-se de uma "resposta da sociedade à tensão que a globalização neoliberal produziu, no sentido de desamparo frente a forças econômicas além de seu controle".
Junto à Guerra na Ucrânia, o cenário político "se desarranja", a ponto de, segundo Roncaglia, existir "uma fratura no sistema financeiro internacional que, antes, era dominado pelo dólar e agora já vê uma contestação por parte do sistema internacional de pagamentos chinês – o Cips (Sistema de Pagamento Interbancário Transfronteiriço, em tradução)".
O Brasil, que está tentando mudar a relação entre os blocos no que concerne aos bens industriais, visa uma transferência de tecnologia que, nos anos 1990 e 2000, não era levado em conta, "dificultada tanto pela existência de patentes, quanto pela ausência de capacidades produtivas locais que te permitem aprender com essa transferência", analisa.
"Se você não tem trabalhadores qualificados, que conseguem entender, por exemplo, um manual que vem para operação de uma máquina e que nunca trabalharam com uma máquina similar àquela a própria transferência tecnológica fica proibida, impedida ou dificultada", disserta o economista e professor da Unifesp, em relação às trocas de tecnologias previstas no acordo entre União Europeia e Mercosul.
Ao longo dos anos 2000, a China executou essa tarefa de maneira exemplar, qualificando seus trabalhadores e seu parque produtivo. Ela se tornou um destino de interesse das grandes corporações americanas e europeias, que "sabiam que ali não apenas teriam uma mão de obra relativamente mais barata" – o que já teriam em seus próprios países –, "mas também um ambiente de inovação e de estímulo à produção bastante desenvolvido", afirma. "É isso que o Brasil quer fazer".
Todavia, não se trata de copiar, mas de estimular o setor produtivo regional. Dos dois lados, porém, existem muitos espaços de imposição de barreiras. Na questão ambiental, por meio de controle fiscal sanitário, o país pode "encobrir ou disfarçar uma barreira comercial que ele quer impor".
"Se começa a exigir uma série de demandas na área ambiental porque, na verdade, ele quer proteger a sua indústria local", observa o professor.
No mundo unipolar e globalizado, a União Europeia tinha um razoável conforto. Agora, busca estabelecer formas de proteção econômica, "porque os números da China, particularmente no Brasil, são monstruosos".
"Vejo uma reorganização produtiva regional, que aparece de maneira sintética no termo 'desglobalização', em que o conceito ou critério de alocação de recursos para onde o capital vai deixou de ser a rentabilidade de curto prazo, estabelecida pelos critérios financeiros que regeram aquilo que hoje se chama 'ordem neoliberal', dos anos 1980 até pelo menos a invasão da Crimeia, em 2014; esse período foi embora", afirma o economista André Roncaglia.
Com a guerra, a cisão entre "sul global" e "norte global", segundo o pesquisador do INPE, Leonardo Rossatto, fica mais evidente. A África e a América Latina são, em grande parte, "capitaneados" pela China, que "de longe é a potência econômica que rivaliza com os Estados Unidos".
É essa retórica de "um bloco liderado pelos Estados Unidos e um liderado pela China" que apresenta, "de novo, um mundo que tem modelos de governança diferentes". É um modelo "neoliberal ante um modelo de Estado mais indutor", salienta.
Ainda assim, essa visão liberal "é uma imposição dos Estados Unidos aos países em desenvolvimento", afirma Rossatto. "Você não fala de neoliberalismo, por exemplo, nos países da Escandinávia".
Extrema direita no horizonte
Após o resultado das prévias das eleições realizadas nesse domingo (13), o Brasil redobrou a atenção para a Argentina. O deputado ultraliberal Javier Milei, da coalização A Liberdade Avança, ficou em primeiro lugar nas primárias com 30,2% dos votos. Se eleito, ele prometeu retirar o país do Mercosul.
Autodenominado "anarcocapitalista", o também economista ascendeu em meio a uma Argentina em crise financeira, apresentando propostas que vão da substituição do peso argentino pelo dólar ao fechamento do Banco Central do país.
Seu desejo de dolarizar a economia liga o alerta para o bloco, em especial o Brasil, que teme a paralisia. Milei disse, em entrevista ao jornal La Nación, que não vê com bons olhos o acordo com a União Europeia.
"É uma união aduaneira que favorece os empresários que não querem competir", afirmou. "Quero estar alinhado com o Ocidente, meus sócios serão os Estados Unidos e Israel; não faço negócios com comunistas".
Javier Milei foi um dos poucos pré-candidatos argentinos a abordar diretamente na campanha a inflação anual de 116% e o índice de pobreza próximo aos 40% do país. O candidato governista, Sergio Massa, atual ministro da Economia no governo de Alberto Fernández, recebeu apenas 21,4% dos votos.
O horizonte curto também chega na Europa. "O Partido Popular e o Vox", partidos de direita e extrema direita, "quase levaram a maioria na eleição da Espanha; o Macron está correndo risco na próxima eleição da França; a extrema direita está crescendo na Alemanha e já se tem uma extrema direita governando a Itália, as maiores economias da União Europeia no momento", observa Rossatto.
Com Donald Trump liderando as pesquisas nos Estados Unidos, sendo o pré-candidato republicano favorito a vencer as prévias do partido – ante um Ron DeSantis, governador da Flórida, já desidratado –, o tempo para fechar o acordo que pode ajudar a União Europeia se esvai.
"No cenário de vitória do Trump em 2024, é certo que aconteceria o congelamento da ajuda dos Estados Unidos à Ucrânia", afirma o cientista social. A atitude sobrecarregaria a Europa, que atualmente já está apertada pelos subsídios que mantém aos ucranianos.
"O custo dos refugiados ucranianos está espalhado pela Europa hoje. Isso gera uma nova demanda nos países europeus por benefícios sociais, para ajudar a sustentar esses refugiados", diz.
"Estamos falando de uma janela de oportunidade [para se fechar o acordo Mercosul-UE] que é única, porque você tem governos no Mercosul relativamente alinhados, pelo menos até o final do ano. A Europa também tem uma confluência de governos para a assinatura do acordo, mas é uma confluência frágil", ratifica Rossatto.