Militares do Exército e Aeronáutica iniciam cerco à Rocinha, no Rio
Fernando Frazão/Agência Brasil
Militares do Exército e Aeronáutica iniciam cerco à Rocinha, no Rio

“É possível constatar que os jovens, em especial os negros (pretos e pardos), analfabetos, são considerados traficantes com quantidades bem menores de drogas (maconha ou cocaína) do que os maiores de 30 anos, brancos e portadores de curso superior”. A frase poderia ser dita por qualquer um, mas não foi: Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), a proferiu durante seu  voto favorável à descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, em agosto de 2023.

Em 2016, o cenário talvez fosse outro. Moraes, à época ministro da Justiça de Michel Temer (MDB), foi ao Paraguai para atuar numa cooperação bilateral contra o crime transnacional. Ele aproveitou a ocasião para ser filmado  cortando pés de maconha com um facão. Uma das prioridades do seu ministério, segundo ele, era “erradicar a maconha” da América do Sul.

A votação no Supremo, onde Moraes marcou sua nova visão sobre o tema, ainda não teve fim, mas foi suspensa em 24 de agosto, após um pedido de vista (mais tempo para analisar) do ministro André Mendonça, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Até o momento, são cinco votos pela não criminalização do usuário.

O tema estava parado no STF há 8 anos, e volta à discussão jurídica em um momento conturbado da segurança pública. Para juristas, a Corte demorou a retomar o julgamento para evitar mais tensão com o governo anterior, de Bolsonaro.

No novo governo  Lula (PT), há maior possibilidade de diálogo. A retomada do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, com  Silvio Almeida à frente, trouxe novo protagonismo à pasta, que sob o comando de Damares Alves (Republicanos-PR), no governo anterior, mantinha uma posição periférica em relação aos demais ministérios, além de ter posições notoriamente mais conservadoras.

Escalada de violência policial

A recente escalada de  violência na Bahia também renova a preocupação com a descriminalização e a política de drogas. “Um conjunto de fatores explicam o momento de hoje na Bahia”, diz Dudu Ribeiro, diretor-executivo da ONG Iniciativa Negra e coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia, à Agência Brasil.

“Um deles tem a ver com a reorganização territorial e geopolítica das organizações criminosas ligadas ao tráfico de armas e de drogas e como resultado da insistência do estado brasileiro na ideia da guerra às drogas”, afirma Ribeiro.

“Isso impacta e de certa forma fortalece as organizações criminosas a partir do momento em que sua força também está diretamente relacionada a sua capacidade de arregimentar mais indivíduos e o superencarceramento tem propiciado isso para as organizações”.

Em São Paulo, a  Operação Escudo, iniciada após a morte do policial da Rota Patrick Reis, também foi motivada pela guerra às drogas. Nos aproximadamente 30 dias em que as forças policiais realizaram ações de combate ao tráfico, entre julho e agosto deste ano, foram registradas 24 mortes – 18 no Guarujá e seis em Santos.

O Brasil gasta, todos os anos, R$ 50 bilhões – ou 0,77% do seu Produto Interno Bruto (PIB) – para custear a política de drogas. Os dados são de um estudo divulgado pelo  Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em junho de 2023, no Fórum de Segurança Pública. 

O trabalho ainda afirma que a “proibição de certas drogas psicoativas e a consequente repressão policial resultam em milhares de mortes por ações violentas no Brasil”. A ideia desse estudo é bastante simples: contar os prejuízos e avaliar a funcionalidade da política de drogas no país.

O pesquisador responsável pelo estudo, Daniel Ricardo de Castro Cerqueira, doutor em Economia pela PUC-Rio com a tese “Causas e Consequências do Crime no Brasil”, diz que “o proibicionismo e, em particular, a guerra às drogas é a forma mais eficiente de desperdiçar recursos públicos e sociais”. Ele complementa: “de fato, a estratégia de reprimir a oferta de drogas pelo caminho da repressão já nasce fadada ao fracasso”.

A violência relacionada às drogas deriva de três efeitos, segundo Cerqueira: psicofarmacológicos (como efeito do uso de substâncias), de compulsão econômica (crimes violentos para obter os recursos necessários para a manutenção do uso de substâncias, “na ausência ou esgotamento de suas posses legítimas”) e sistêmicos (elementos ocasionados pela interação entre o proibicionismo e a coerção do Estado para suprimir o mercado de drogas). O efeito sistêmico é o mais em voga nas discussões acerca da descriminalização das drogas e o uso da violência pelo Estado.

“Não é uma crise de gestão, é uma crise do modelo que se centraliza no aparelho de guerra, porque a Polícia Militar, constitucionalmente é um aparelho de guerra, é força auxiliar do Exército”, diz Dudu Ribeiro, que também é professor e especialista em Gestão Estratégica de Políticas Públicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“A gente precisa pensar a segurança pública a médio e longo prazo, fazer com que o militarismo saia do centro e a prevenção, a partir da ampliação do acesso a direitos, seja um dos mecanismos centrais na espinha dorsal da política de produzir segurança para as pessoas”.

Problemas históricos

Estudos indicam que a atual Lei de Drogas (11.343), sancionada em 2006 no primeiro mandato de Lula (PT), gerou uma "explosão" no número de pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. 

Em 2005, antes da legislação vigente, havia 296.919 pessoas encarceradas no Brasil, sendo 14% delas por crimes relacionados ao tráfico, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Em 2019, data do último levantamento, eram 773.151 detentos, uma alta de 160%.

Levantamento de 2019 mostra uma alta de 160% no número de presos
Wilson Dias/Agência Brasil
Levantamento de 2019 mostra uma alta de 160% no número de presos

“A lei de drogas prevê, basicamente, dois crimes: o uso pessoal no artigo 28 e o tráfico no artigo 33”, diz Cristiano Maronna, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), diretor da  Plataforma Justa, pesquisador na área de política de drogas e autor de  “Lei de Drogas Interpretada na Perspectiva da Liberdade” (2022). “O Brasil tem hoje a terceira maior população prisional do planeta e um terço desses presos estão lá por conta da lei de drogas”, ressalta.

O advogado explica que existe uma diferença entre a legalização e a descriminalização. “Descriminalizar significa retirar do campo criminal, e isso não significa necessariamente legalizar; o próprio Supremo está propondo uma descriminalização que mantém a posse para uso pessoal na ilegalidade administrativa”, aponta Maronna, que também é membro da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP e representante da OAB no Conselho Municipal de Política sobre Drogas de São Paulo.

“Quando a gente fala de legalização, falamos de colocar na legalidade toda a cadeia produtiva – desde a produção, distribuição, comércio, enfim, todas as etapas dessa cadeia. O que diminui a violência é a regulação, criar regras. A guerra às drogas é a grande razão dessa violência e da letalidade policial”, complementa.

O relatório  "Favelas na Mira do Tiro: Impactos da Guerra às Drogas na Economia dos Territórios", do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC), traz apontamentos similares aos do advogado. “O Estado escolhe investir em estratégias ineficazes que produzem impactos irreversíveis na vida das pessoas, sobretudo da população negra, pobre e periférica”, diz o documento publicado em setembro de 2023, que avaliou o Complexo de Manguinhos e o Complexo da Penha, os dois territórios com a maior incidência de tiroteios decorrentes de ações policiais entre junho de 2021 e maio de 2022.

“Na prática, muitos usuários são tratados como traficantes porque a diferenciação entre eles é feita com base em critérios muito abertos, que deixam margem para subjetividade e essa subjetividade acaba sendo resolvida a partir da cor da pele e do local onde a pessoa está”, destaca Cristiano Maronna. 

“Nós temos uma lei de drogas que promove o encarceramento em massa de muitos usuários, tratados como traficantes. Quanto mais se prende, mais as facções criminosas se fortalecem, e quanto mais fortalecidas as facções criminosas, temos mais violência. Isso acaba gerando um círculo vicioso”, argumenta o advogado.

Ainda assim, caso seja aprovada no STF, a descriminalização não terá grande efeito sobre a escalada de violência no país. “Primeiro porque vai se restringir apenas a maconha, e a gente sabe que o principal produto do tráfico de drogas é a cocaína – a commodity mais valiosa e a que dá mais lucro –, e segundo que somente a legalização de todas as drogas vai ser capaz de criar um ambiente regulatório que permita, de fato, a relação pacífica entre produtores consumidores e autoridades”.

Segundo Maronna, existem alternativas ao encarceramento em massa. “Uma possibilidade é o autocultivo [de maconha], que permitiria aos usuários produzir a própria maconha de modo que não haveria necessidade de ter acesso aquela produzida pelo crime organizado. Outra é o cultivo em associações, como acontece em outros lugares, chamados de clubes sociais – uma experiência muito exitosa na Espanha, por exemplo”.

Para o advogado, a criminalização da posse de drogas para uso pessoal fere os princípios constitucionais, como a intimidade, a vida privada, “e mesmo a proporcionalidade”.

“A sociedade já convive com riscos decorrentes do uso de substâncias, como é o caso do álcool, do tabaco, dos fármacos, e nós já temos a experiência de regular substâncias nocivas. Não é papel do Estado, não é papel do direito penal, educar moralmente pessoas adultas e capazes”, afirma.

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