Documentos obtidos pelo jornal paraguaio ABC Color e publicados nesta sexta-feira (10) revelam o desenvolvimento das negociações para a ata assinada entre Brasil e Paraguai no dia 24 de maio, pela qual o país vizinho concordou em pagar mais pela energia que consome da hidrelétrica binacional de Itaipu. A divulgação dos termos da ata, em 24 de julho, levou o presidente paraguaio, Mario Abdo, a sofrer uma ameaça de impeachment. Para evitar esse desfecho, Abdo cancelou o documento em 1º de agosto.
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Os documentos indicam que a negociação do lado paraguaio foi comandada por diplomatas e deixou à margem a diretoria da Ande, a estatal paraguaia de energia, ao contrário do que determina o acordo de Itaipu . Eles mostram que as reuniões começaram em março a pedido do Itamaraty e que Assunção aceitou cinco das seis demandas do Brasil, que também determinou as datas dos encontros, os itens a serem discutidos e redigiu a proposta da ata.
Pela ata, o governo paraguaio passaria a declarar gradualmente, até 2022, uma contratação maior da energia dita "garantida" de Itaipu, mais cara, deixando de contar com a chamada "energia excedente", bem mais barata. De acordo com técnicos paraguaios, os gastos do país aumentariam em ao menos US$ 200 milhões anuais.
Depois da divulgação da nova leva de documentos pelo jornal paraguaio, os ministérios das Relações Exteriores e de Minas e Energia do Brasil e a Eletrobras soltaram uma nota conjunta, em que pela primeira vez se posicionaram sobre as negociações. O comunicado afirma que, ao contrário da opinião que se popularizou no Paraguai , o acordo “não foi secreto”.
O pacto, diz a nota, “foi fruto de consenso entre os representantes dos dois países” e “buscava corrigir uma defasagem histórica na contratação da energia de Itaipu por parte da Ande”. “Considerando que a contratação pela Ande não tem acompanhado o alto crescimento de sua demanda de energia, a ata bilateral buscou reequilibrar esta relação, de modo que cada parte pague pela energia que efetivamente consome”, acrescentou a nota do governo brasileiro.
A nota também alude às denúncias veiculadas pela imprensa paraguaia de que o governo de Assunção manobrava para favorecer uma empresa brasileira, a Léros, na venda de energia de Itaipu que o Paraguai não consome, em negociações com a participação do empresário Alexandre Giordano, suplente do senador Major Olímpio (PSL-SP).
Segundo o texto, “o Tratado de Itaipu somente permite a venda da energia produzida pela usina para a Eletrobras e para a Ande. Portanto, não tem qualquer fundamento a especulação sobre a possibilidade de comercialização da energia da usina binacional por parte de alguma empresa que não seja a Eletrobras e a Ande”.
O ex-presidente da Ande, Pedro Ferreira, no entanto, afirma que o Paraguai reivindicava que a ata de maio incluísse um "ponto 6", pelo qual o país poderia passar a vender energia diretamente no mercado livre brasileiro. O vice-presidente do país vizinho, Hugo Velázquez, disse no Congresso que, nessa expectativa, houve um chamamento a empresas brasileiras interessadas.
Nesta sexta-feira, o Ministério Público do Paraguai anunciou que o presidente Mario Abdo Benítez, e seu vice serão convocados a depor na semana que vem, como parte da investigação sobre o caso. Abdo respondeu no Twitter que está “à disposição da Procuradoria para colaborar com a investigação e a busca da verdade”.
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Iniciativa brasileira
Segundo os documentos divulgados pelo ABC Color, as negociações começaram no dia 27 de março, quando a embaixada brasileira propôs à Chancelaria paraguaia realizar uma reunião em Itaipu no dia 11 de abril com o objetivo de “estabelecer um cronograma da potência de Itaipu a ser contratada em 2019”. No dia 2 de abril, o Brasil e o Paraguai acordaram que a reunião seria entre os ministérios de Relações Exteriores dos dois países. O Brasil informou os diplomatas que enviaria, e o Paraguai informou os seus representantes no dia seguinte.
No dia 4 de abril, o Brasil enviou a pauta que pretendia abordar na reunião do dia 11 de abril. O encontro tinha o objetivo de “superar a atual divergência entre a Ande e a Eletrobras sobre a contratação de energia da usina de Itaipu”. O governo brasileiro pretendia não apenas “estabelecer o cronograma da energia de Itaipu a ser contratada durante o ano em curso, mas também abrir discussões sobre outros pontos”.
Seis pontos adicionais foram propostos à pauta: “a) cronograma de contratação de energia de itaipu de 2019 a 2021; b) método de cálculo de energia contratada da Eletrobras eventualmente cedida à Ande; c) contabilização e valoração da eventual cessão à Ande da energia vinculada à Eletrobras; d) flexibilização do nível do reservatório de Itaipu; e) divisão de energia afluente entre as entidades compradores, quando sejam alcançados dez centímetros da cota mínima operativa autorizada do reservatório; f) condições necessárias para operar com mais de 18 unidades geradoras de energia”.
Este último ponto foi o único não acordado entre as partes. Especialistas ouvidos pelo ABC Color informaram que provavelmente não houve consenso porque o item prejudicaria acordos com a Argentina.
A proposta da ata foi redigida pelos brasileiros. No dia 16 de abril, o Brasil pediu mais uma reunião entre as chancelarias entre 22 e 24 de maio, em Brasília, para concluir as negociações. Propuseram que, no mesmo dia, houvesse reunião entre diretoria de Itaipu, da Eletrobras e da Ande, na ocasião em que seria assinado o acordo.
A reunião entre as chancelarias deveria acontecer de manhã e, na parte da tarde, deveria “ocorrer o encontro das diretorias de Itaipu, Ande e Eletrobras . O Brasil entende ser importante que o exame final do contrato e do acordo operativo pelas respectivas diretorias se dê sob a supervisão das chancelarias”, disse a mensagem.
A reunião foi marcada para o dia 24 de maio. No dia 15 daquele mesmo mês, o Brasil informou que a sua delegação seria liderada pelo secretário de Negociações Bilaterais e Regionais nas Américas do Itamaraty, embaixador Pedro Miguel da Costa e Silva e pela diretora para a América do Sul do Itamaraty, embaixadora Eugenia Barthelmess. Também propôs que as delegações pudessem ser assessoradas por técnicos. O Paraguai concordou e informou que sua delegação seria presidida por Hugo Saguier Caballero, então embaixador do país no Brasil.
No dia 22 de maio, o Brasil informou que diretores da Eletrobras e da parte brasileira de Itaipu iriam à reunião, "tendo em vista a natureza técnica de elementos da ata bilateral". O país reiterava a importância de uma reunião entre Itaipu, Ande e Eletrobras à tarde, após a assinatura do acordo.
Segundo a reportagem, o Paraguai não consumou a parte contratual da ata porque os encarregados das negociações não mantiveram a Ande informada. Por exigência do tratado de Itaipu, os diretores da empresa estatal deveriam assinar o contrato. A assinatura da ata de 24 de maio, no entanto, aconteceu sem o conhecimento dos técnicos paraguaios.
A sugestão de um memorando preparado pela Ande para a Chancelaria do país, que permitiria ao Paraguai vender energia no mercado livre brasileiro, também não constou na pauta de discussões. Essa autorização anteciparia uma demanda feita pelo Paraguai para 2023, quando a dívida de Itaipu estará paga e o tratado de 1973 será renegociado.
Segundo o ABC Color, Pedro Ferreira, o então presidente da Ande, só teve acesso à ata no dia 4 de junho, quase 12 dias após a sua assinatura, tendo sido então informado pelo chanceler Luis Alberto Castiglioni que teria 30 dias para elaborar e formalizar o contrato. No dia 1º de julho, Castiglioni voltou a pressionar Ferreira, informando-o de que havia uma reunião marcada para 4 de julho entre os diretores gerais de Itaipu , o presidente da Ande e o da Eletrobras para firmar o documento.
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Áudios desta reunião que vazaram no final de julho mostram Pedro Ferreira reclamando que técnicos e especialistas da Ande desconheciam os termos da reunião e do documento, o que levou às acusações de secretismo no Paraguai. Ferreira renunciou no dia 24 de julho, enquanto Castiglioni e Hugo Saguier, embaixador no Brasil, tomaram a mesma atitude cinco dias depois.