Rafaela Coutinho Matos, de 36 anos, tem certeza de que seu filho, João Pedro Matos Pinto, morto aos 14 anos durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, foi vítima de racismo. “Eles acham que quem mora na favela não pode ter uma casa boa, se tem uma casa boa é bandido”, conta a professora, se referindo aos policiais que invadiram o imóvel da tia do menino — uma casa com piscina no jardim —, onde João Pedro brincava com seis amigos. Após João Pedro ser baleado, ele foi levado por policiais num helicóptero. Rafaela passou as 18 horas seguintes em busca de informações sobre o filho . Ela só o veria novamente dentro de um caixão.
Na semana em que o crime completa um mês, a mãe conta, em entrevista ao Jornal Extra, como tem explicado para a filha mais nova, de 4 anos, o motivo da ausência do irmão e fala sobre a vontade de sair do Complexo do Salgueiro e a angústia com a proximidade da data em que João Pedro faria 15 anos, no próximo dia 23: “Eu não queria que chegasse esse dia”.
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Como tem sido a vida sem João Pedro?
Essas quatro semanas foram muito difíceis. A saudade só aumentou. Quando eu olho para as coisas que ele gostava de comer, lembro das brincadeiras que ele gostava de fazer... Eu ainda não sei como seguir em frente ainda, é uma dor que não desejo para ninguém. A casa onde nós moramos me lembra dele o tempo todo. Eu gostaria muito de poder sair daqui, minha vontade é essa, mas hoje não temos dinheiro.
O João Pedro tinha uma irmã mais nova, a Rebeca, de 4 anos. Você explicou para ela o que aconteceu?
Ela pergunta muito por ele, fala sempre nele. Tentei explicar que ele está no céu, mas ela ainda não entende o que aconteceu. Procuro trocar de canal, desligar a TV, quando aparece reportagem sobre o irmão, mas ela acaba percebendo. Sei que tem sido muito difícil para ela também.
Você não estava na casa no momento em que seu filho foi baleado . O que você acha que aconteceu lá dentro? Por que os policiais atiraram?
Eles acham que quem mora na favela não pode ter uma casa boa, que, se tem uma casa boa, é bandido. A casa da minha irmã, onde o João estava, é uma casa grande, bonita, com piscina no jardim, muro alto. Para mim, eles não viram traficantes lá. Nenhum criminoso pulou o muro daquela casa. Eles chegaram atirando. Eu não consigo entender, não sei o que se passa na cabeça desses policiais, atirar numa criança inocente. É muito desprezo pela vida.
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E a operação aconteceu no meio da pandemia, com as pessoas tendo que ficar em casa...
O João Pedro fazia parte de grupo de risco, tinha bronquite. Ele era uma criança muito alegre, estava na fase de descoberta, de querer começar a namorar. Mas ele ficava em casa, não saía. Naquele dia, quando as crianças ouviram os helicópteros, ligaram para os responsáveis, perguntaram o que deveriam fazer. A tia do João Pedro disse: “Se eles baterem, abre a porta, deixa entrar. Não tem problema nenhum, vocês estão dentro de casa”. Nós achávamos que os policiais iriam protegê-los.
O assassinato do George Floyd , um homem negro morto por um policial branco nos Estados Unidos, causou um aumento no debate sobre racismo no mundo todo. Na sua opinião, seu filho também foi vítima de racismo?
A verdade é que existe um preconceito, sim. Se fosse na Zona Sul, eles não entrariam numa casa de família atirando. Há um preconceito em se concluir que quem mora na favela não é gente de boa índole. Meu filho era um jovem negro e estava numa casa bonita dentro de uma favela. Acho que isso influenciou, sim, na hora de tomar a decisão de atirar.
Como vocês avaliam os passos da investigação até agora?
Ficamos chateados com a demora. Queremos que haja justiça e sabemos que a investigação não é um processo rápido. Mas estamos confiantes que a verdade vai prevalecer. Por mais que os policiais tentem esconder e mentir, a verdade vai prevalecer. Ninguém melhor do que os garotos que estavam com o meu filho para dizer exatamente o que aconteceu ali.
Eu quero justiça para meu filho. Mas a repercussão é importante para que haja uma reflexão sobre o modo como a polícia age. Sei que a morte dele não foi a única nem a última desse tipo. Vários outros já foram mortos no Rio depois. Mas espero que o caso sirva para que o povo acorde e tente mudar o jeito como acontecem essas operações.
O João Pedro faria 15 anos no próximo dia 23. Como vai ser a data este ano?
A família toda faz aniversário junta. Eu faço no dia 20, meu esposo faz no dia 19. E todos costumávamos comemorar juntos no dia do aniversário dele. Ele sempre gostou de ir para o shopping com os amigos da idade dele, os primos. Nós íamos também, as crianças iam para o cinema, e nós ficávamos aguardando com parentes e amigos. Ele estava ansioso, já tinha comentado comigo que queria ir para o shopping, mas não sabia como seria na pandemia. Disse para ele esperar, porque ele comemoraria depois, quando tudo passasse. Vou te falar a verdade: eu não queria nem que chegasse esse dia. Vão ser dias bem difíceis para a gente. Não sei como eu vou passar por essas datas, não. Ele sempre ficava muito ansioso antes do aniversário, gostava de comemorar.