A edição do Enem de 2020 suscita as mais variadas discussões, dentre elas há o posicionamento do Ministério da Educação (MEC) que deseja manter a prova nos moldes atuais, as entidades de representação estudantil ao lado de deputados que buscam pelo adiamento, e uma fatia menor que deseja o cancelamento da avaliação deste ano.
Em meio ao debate, milhares de alunos de baixa renda e rede pública enfrentam adversidades diárias para conseguir estudar durante a quarentena causada pela disseminação do novo coronavírus (Sars-Cov-2), além de lidar com a cobrança e a ansiedade características deste momento.
Como é o caso de Ângela Borges, de 28 anos, moradora do bairro Nossa Senhora da Apresentação, na periferia de Natal, Rio Grande do Norte . Ângela é categórica ao relatar as dificuldades que enfrenta para se preparar para a prova e afirma que não há possibilidade de realizar o exame com plenas condições de êxito na conjuntura atual.
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“Esse ano, se tiver, vai ser horrível. Não têm condições. A gente não tem estrutura de ensino para conseguir estudar ”, conta a estudante.
Ângela finalizou o ensino médio no ano passado após realizar o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos) e hoje se desdobra para conciliar os estudos em casa - com o material recebido pelo Whatsapp pelo cursinho comunitário da Rede Emancipa - e cuidar da filha, Ana Lívia, de 5 anos.
"Tá horrível! Aqui em casa sou eu, minha mãe e minha filha. Eu estudo pelo celular, não tenho computador em casa. Geralmente, eu estudava de manhã porque era o período em que minha filha estava na escola, mas agora que as escolas pararam, a nossa rotina mudou completamente ”, conta.
“Eu tento estudar logo cedo, enquanto ela [a filha Ana Lívia] está dormindo. Tento responder as atividades que a coordenadora do Emancipa manda. À tarde, quando ela está brincando, eu tento também, mas não é o mesmo rendimento porque tem barulho dentro de casa. Não consigo me concentrar direito”, complementa.
Tatiane Ribeiro é coordenadora nacional da Rede Emancipa e colabora com a coordenação regional do Rio Grande do Norte - núcleo que Ângela frequenta.
Ela conta que realizou uma pesquisa para compreender a realidade dos alunos e identificou que aproximadamente 98% dos alunos têm Smartphone e acesso ao Whatsapp , embora muitos sofram a falta de computadores e de rede Wi-Fi.
Dessa forma, os professores passaram a gravar as aulas para disponibilizar o material para os alunos que sofrem com a paralisação das aulas da rede pública e do cursinho comunitário.
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“A maneira que a gente lida é compreendendo que o Whatsapp vai ser a melhor maneira de chegar, mesmo assim é difícil
. Enche a memória do celular com vídeo, o vídeo tem que ser curto e de baixa qualidade. Todos esses empecilhos dificultam, mas a gente tem tentado o máximo possível estimular os nossos alunos a tentar estudar pelo celular
”, explica.
Os alunos da rede estadual do Rio Grande do Norte sofrem com uma defasagem ainda maior, que não recai sobre os alunos do restante do país, pois estão sem aulas desde o início do ano letivo, por conta de uma greve dos professores. A categoria exige reajuste do piso salarial em 12,84%.
Mesmo com a crise instalada na educação pública do estado, os governantes não realizaram medidas de migração das aulas para o ambiente on-line ou de distribuição de material para que os alunos estudem em casa, como foi realizado pelo governo de São Paulo.
“Nem o prefeito [de Natal] e nem a governadora fizeram nada. Nenhum incentivo nessa linha. Não vou dizer que a governadora agiu de má-fé, mas os professores já estavam de greve desde o começo do ano porque não receberam o décimo terceiro salário. Aí ela aproveitou para fechar tudo. Não teve aula em nenhum momento do ano aqui, nem na rede municipal nem na estadual” , explica Ângela.
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Em meio a todos os conflitos que permeiam a vida pública no Rio Grande do Norte, Ângela revela as angústias que se abatem sobre a sua vida neste momento.
“Estou ansiosa demais, acho que já engordei uns 5 quilos (risos). A única saída daqui de casa é para ir ao mercado e para levar Ana Lívia na casa da minha vó", conta.
"Meu maior medo é não conseguir. Não conseguir estudar direito. Não conseguir entrar (na faculdade). Não conseguir realizar nada que eu planejei para este ano. A gente já está em maio, metade do ano passou e a gente não fez nada”, revela.
Ângela sonha em estudar Gestão Pública na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e além de lidar com os problemas emocionais inerentes à quarentena, bem como com a falta de material adequado, a jovem ainda revela grandes dificuldades para seguir ajustar a rotina de estudo.
“Minha principal dificuldade é a concentração . A gente fica muito tempo preso dentro de casa, a rotina quebrou e não tem como seguir o ritmo que eu construí do final do ano passado pra cá”, explica.
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Para conseguir realizar as atividades com um pouco mais de concentração, a jovem estudante inicia as atividades às 7h da manhã , enquanto a filha dorme. Mas revela que “o rendimento de aula on-line não é o mesmo da aula presencial. Não tem o debate”.
Ela diz que estuda cerca de 3 horas, até o momento em que Ana Lívia acorda e toda atenção destinada aos estudos é voltada para a criança que sofre com síndrome de Williams e enfrenta momentos de agitação.
Cancelar, adiar, congelar ou reformular?
Com todos os empecilhos do estudo em casa e da conjuntura da saúde pública do país, Ângela acredita que a edição deste ano deveria ser cancelada .
“Eu acho que tem que ser cancelado. Eu acredito que aqui em Natal, se continuar do jeito que está, essa pandemia vai durar uns 4 ou 5 meses, porque o pessoal aqui não para”, explicar.
Porém, este não é o posicionamento de Tatiane Ribeiro, coordenadora da Rede Emancipa, que integra um movimento nacional pelo adiamento do Enem.
Ela defende que o caminho mais justo para não prejudicar os alunos em situação de vulnerabilidade social é o congelamento do calendário escolar e do exame deste ano.
“Como nós podemos fazer uma prova de conclusão do ensino médio se a gente não sabe nem se esse aluno vai concluir o ensino médio? Enquanto alunos de escolas particulares estão tendo aulas em salas de bate-papo super tecnológicas, os nossos alunos têm outras preocupações - eles estão preocupados se vai cair ou não o auxílio emergencial , eles não têm computador para ter acesso e as escolas estão paradas”, explica.
Para garantir o congelamento do calendário, a Rede Emancipa, em parceria com a deputada estadual Sandra Pimentel (PSOL/RN), entrou com uma ação civil pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte.
“O TCU e o Congresso Nacional pediram o adiamento, são vários processos paralelos que vão se fortalecendo. Parece que só quem é contra é o ministro (Abraham) Weintraub , de resto todo mundo acha que tem que adiar, então vai se fortalecendo. É difícil de fazer qualquer previsão porque tudo que a gente prevê é pior do que o previsto neste governo.”, defende Tatiane.
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Na mesma linha das movimentações do Emancipa e dos órgãos públicos, entidades de representação estudantil como a UNE (União Nacional dos Estudantes) e a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) se uniram para levantar a hashtag #adiaenem .
As duas entidades do movimento estudantil entraram com um mandado de segurança no STJ (Superior Tribunal de Justiça) pedindo formalmente o adiamento da edição deste ano.
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“Sem o local da escola, a assistência presencial do professor, a biblioteca, o laboratório de informática, você vai ampliar ainda mais a distância entre esses jovens estudantes que estão em classes sociais diferentes , por isso a mobilização do adiamento do enem”, conta Iago Montalvão, presidente da UNE.
Iago explica que a proposta do adiamento é para que os estudantes da rede pública tenham mais tempo para se preparar e ter algum aproveitamento nas escolas com uma eventual a volta às no pós-quarentena.
“Sem aulas, os estudantes mais pobres - que têm menos condições de estudo em casa, por não ter internet, por não ter livros, por não ter um espaço adequado para estudar - são os mais prejudicados “, defende.
A campanha organizada pela UNE e UBES conta com um abaixo assinado que já soma mais de 170 mil assinaturas pedindo o adiamento da prova.
Iago diz que a proposta é de que MEC convoque um grupo de trabalho , com secretários, professores e representações estudantis para discutir, com elementos técnicos e pedagógicos , o tempo máximo que podem adiar as provas e o tempo suficiente para que os alunos recuperem o que foi perdido.
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“Nossa proposta nunca foi a de cancelar, esse é um argumento que o ministro usa para tentar desmoralizar o nosso movimento, mas na verdade esse é um argumento oportunista ", afirma.
"Porque tenta criar um sentimento de caos e pânico nas pessoas. Nós não queremos que não tenha Enem esse ano, não queremos pular um ano letivo, só queremos que tenha mais tempo ”, explica Iago.
Com o mesmo entendimento dos movimentos estudantis, Thays Oliveira, de 16 anos, aluna da Etec de Pirituba, defende que o adiamento do Enem é o melhor caminho para os estudantes de escolas públicas e de baixa renda.
“Acho que deveria ser adiado, pois muitos alunos não conseguem ter aula a não ser na escola. Nem todo mundo tem uma tecnologia boa ou um livro bom, por mais que o governo dê esses livros para os alunos não é todo mundo que tem essa condição de tirar dúvidas na internet que nem eu faço”, explica.
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Thays conta da iniciativa do governo do estado de São Paulo, que disponibilizou kits com apostilas e livros para os alunos da rede pública, além de garantir a transmissão de aulas ao vivo no canal TV Cultura Educação, da televisão aberta. Também são realizadas aulas online por meio de um aplicativo instalável nos computadores e celulares.
Ela conta que, assim como Ângela, lida com muito medo e insegurança em relação à prova. “Por ser a primeira vez [ que vou prestar o Enem] me sinto muito insegura, não sei como vou reagir. Não sei o que estudar, mesmo tendo um monte de dicas pela internet", afirma.
"O principal fator para eu não estar preparada é o medo por ser minha primeira vez e a falta de aulas presenciais interfere nisso. Porque muitos professores não conseguem dar aula direito pelo aplicativo. Eles têm muita dificuldade ainda”, conta.
“Minha principal dificuldade, com certeza, é manter o psicológico bem para conseguir entender as coisas, focar nas aulas e entender a matéria. Eu me distraio muito fácil e focar em uma aula on-line está sendo a minha principal dificuldade no momento. É um sentimento de ansiedade e de medo . Com essa pandemia afetando as aulas e o nosso psicológico. Às vezes dá um pânico , mas eu tento me controlar” , complementa.
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Nessa mesma linha, Tatiane mantém contato diariamente com os alunos do Emancipa para garantir apoio emocional e psicológico neste momento de fragilidade.
Ela conta que neste sábado (16) será realizada uma transmissão ao vivo à partir das 14h para discutir estudos e saúde mental com a psicológica Kamilla Soares, especialista em trabalhos com jovens e negritude.
“Eu troco mensagens com mais de 800 alunos
diariamente e de maneira geral eles estão muito preocupados
porque não conseguem estudar. Não porque são preguiçosos, ou porque estão fazendo outras coisas, mas por causa do déficit da educação pública brasileira e estudar sozinho é ainda mais difícil", diz Kamilla.
"Muitos não têm estrutura para estudar, estão desestimulados. É um processo diário tentar estimulá-los. Além disso, uma quantidade considerável desses alunos está preocupada porque não vai conseguir se manter em quarentena por muito mais tempo, se não houver soluções do ponto de vista econômico . Muitos ainda não receberam a renda básica emergencial ” , conta.
“Nós sabemos que o desestímulo não é só para fazer o Enem esse ano, pode significar a desistência de tentar ingressar na faculdade e ir para o mundo do trabalho com outras perspectivas", analisa.
"Existe uma pressão da sociedade, principalmente para a maioria das pessoas que moram na periferia - que são em sua maioria negros, como é o caso dos nossos alunos - para terminar a escola e já começar no mundo do trabalho. E a pressão de que a universidade não é pra eles, é muito caro, que a universidade pública é para gente rica, e não pra gente pobre. A gente tenta o máximo possível estimulá-los, para que não desistam agora, porque pode ser que desistam pra sempre ”, enfatiza.
Pensando nas dificuldades que os alunos do Emancipa enfrentam neste momento, a coordenação do Rio Grande do Norte realizou uma campanha de solidariedade ativa para distribuir cestas básicas e material de limpeza, além do incentivo psicológico para prosseguirem com os estudos.
Como definiu Tatiane, a campanha é o primeiro passo para manter os alunos focados, porque “ninguém estuda com fome ”.
Brasil versus experiências internacionais
O Ministério da Educação (MEC) se mantém irredutível na realização do Enem deste ano, mesmo com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tendo declarado nesta semana que há possibilidade de que o exame seja adiado.
A insistência na manutenção do exame nos moldes atuais, representada pelo ministro Abraham Weintraub, vai na contramão de diversos órgãos e personalidades públicas que pediram o adiamento da prova, como o Tribunal de Contas da União (TCU), que deu 5 dias para o Inep se posicionar, e a deputada federal Tabata Amaral (PDT/SP) que apresentou um projeto de lei para adiar o exame, assim como outros 5 deputados.
“O MEC, por sua vez, tem uma insensibilidade muito grande porque simplesmente finge que nada está acontecendo, que a vida está normal. Em mais de 10 países adiaram seus processos seletivos em decorrência da mudança de calendário em toda vida da sociedade. É uma falta de sensibilidade total do MEC com o problema da desigualdade social e com os alunos mais pobres”, afirma Iago Montalvão.
Como apontou o presidente da UNE, exames tradicionais equivalentes ao Enem sofreram alterações,como o BAC da França, que foi cancelado; o Maturitá da Itália, que será realizado apenas por videoconferência; o SAT dos Estados Unidos, que está com o calendário congelado e com possibilidade de realização digital; além do maior vestibular do mundo, o Gaokao que foi adiado em um mês.