Parlmentares protestam contra o Marco Temroral e o machismo na política
Psol/Divulgação
Parlmentares protestam contra o Marco Temroral e o machismo na política

O machismo é o responsável por diversas formas de violência de gênero contra as mulheres brasileiras em todo tipo de ambiente e, na política - historicamente um âmbito dominado por homens brancos - o problema é amplificado. Dados da ONU Mulheres revelam que entre as parlamentares brasileiras, 45% já sofreram ameaças, 25 % sofreram violência física no espaço parlamentar, 20% foram vítimas de assédio sexual e 40% declaram que a violência sofrida atrapalhou sua agenda política. 

Essa problemática ficou escancarada ao longo deste ano de 2023, diante de notícias sobre deputadas federais que denunciam perseguição parlamentar no âmbito da Câmara dos Deputados; e da cobiça de congressistas do centro político por cargos em ministérios comandados por mulheres no governo Lula. 

Perseguição parlamentar e violência de gênero

Uma das situações recentes que escancaram a resistência masculina à atuação de mulheres nas esferas de poder é a abertura de um processo que pede a cassação das deputadas federais Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Célia Xakriabá (PSOL-MG), Fernanda Melchionna (PSOL-RS), Talíria Petrone (PSOL-RJ), Erika Kokay (PT-DF) e Juliana Cardoso (PT-SP), em razão de críticas feitas por elas no exercícios de seus mandatos. 

A representação é assinada por  Valdemar da Costa Neto, presidente do partido ao qual o ex-presidente, Jair Bolsonaro, é filiado. Ele acusa as parlamentares de quebra de decoro ao protestar durante a sessão que aprovou o Projeto de Lei 490/2007, que estabelece o  Marco Temporal para demarcações das terras indígenas, no fim de maio deste ano. 

Diante da aprovação do projeto que limita a demarcação de terras indígenas àquelas áreas que já estavam ocupadas em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal vigente, as deputadas gritaram “assassinos do povo indígena, vocês são assassinos do nosso povo”, nos microfones, dirigindo-se aos parlamentares que votaram favoravelmente à aprovação do Marco Legal. 

O PL afirmou que as parlamentares continuaram ofendendo outros deputados mesmo após o corte dos microfones, em especial o deputado Zé Trovão (PL-SC), autor do requerimento de urgência para a votação do projeto. 

As deputadas passaram, então, a realizar atos de protesto e se mobilizar em defesa de seus mandatos, alegando que são, sim, perseguidas na Câmara, visto que outras condutas graves de homens no exercício do trabalho parlamentar não são tratadas com o mesmo rigor e rapidez. 

Parlamentares protestam contra machismo na política
Agência Câmara
Parlamentares protestam contra machismo na política


Erika Kokay (PT-DF), uma das deputadas que se tornou alvo do pedido de cassação por suposta quebra de decoro parlamentar, classifica a parcialidade dos homens da Câmara dos Deputados como “muito evidente”, visto que ela e suas colegas foram as únicas processadas, mas outros parlamentares — homens — também protestaram contra a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, chamando de “assassinos” os responsáveis pela aprovação do texto. 

“Das seis mulheres [e deputadas processadas], duas são indígenas. Temos uma nítida parcialidade porque houve um recorte: ‘Vamos processar as mulheres para que se calem, para intimidar as mulheres, para ameaçar a atuação das parlamentares na vida política’”. 

Ela também destacou a rapidez da tramitação do processo, que saiu da presidência da Câmara (ou seja, teve a chancela do presidente da Casa, Arthur Lira do PP de Alagoas, acusado de agressão e estupro pela ex-esposa) e chegou ao Conselho de Ética em tempo recorde. 

“Nosso processo levou apenas 4 horas para sair da presidência da Câmara para o Conselho de Ética. Temos processos gravíssimos de deputados que incentivaram ou buscaram naturalizar os ataques golpistas de 8 de janeiro que ainda não chegaram ao conselho, e o nosso chegou em quatro horas”, disse Erika. 

Para além da tentativa de intimidação e perseguição por meio do Conselho de Ética, Erika ainda aponta outras violências de cunho sexista sofridas por ela e diversas outras parlamentares no exercício da política. 

“Nós diversas vezes escutamos ‘vocês são deputéricas’, que é um trocadilho entre ‘deputadas’ e ‘histéricas’. ‘Deveriam dormir e não acordar mais’. ‘São gaiola das loucas’. Várias tentativas de nos calar, de nos moldar e estabelecer lugares definidos pelos próprios homens na sua lógica patriarcal e patrimonialista para atuação das mulheres. A violência política de gênero é uma realidade cotidiana que precisa ser identificada e combatida”, contou a deputada. 

Ela também aponta o quanto essa realidade perversa de discriminação que afasta inúmeras mulheres do meio político é usada como estratégia para que elas não possam se sentir confortáveis no exercício do poder. 

“Não temos dúvida de que o processo que busca cassar nossos mandatos é uma expressão dessa mesma violência, onde eles buscam nos intimidar, impedir que as mulheres se sintam confortáveis no exercício da política, que a lógica patriarcal e sexista estabeleceu como espaço masculino. Não! É um espaço feminino também. A melhor forma de reagirmos a todas essas formas de violência é não nos calarmos. Vamos continuar expressando nossas opiniões e exercendo nossos mandatos”, reafirmou a deputada Erika Kokay.

Por fim, Erika apontou a necessidade de enfrentar a violência política de gênero não apenas dentro do parlamento, mas com todo o conjunto da sociedade, levantando esse debate e travando as batalhas necessárias para acabar com o problema. 

“É preciso que a sociedade se manifeste, porque se calar frente à violência é estabelecer o pacto de cartolas, casacas e bengalas que eles querem firmar neste parlamento. É preciso dizer ‘NÃO’ a esta perseguição explícita que mostra como o fascismo e a violência política de gênero são ousados. Eles não buscam esconder, fizeram um processo célere para mandar um recado às mulheres na véspera de um ano eleitoral. E a gente vai responder com uma belíssima campanha para dizer ‘NÃO’ à violência política de gênero enchendo as câmaras e prefeituras de mulheres que lutam e fazem política combatendo a violência política de gênero.” 

Por sua vez, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) vem denunciando não apenas o processo que mira os mandatos das seis deputadas. Ela também sofreu ataques durante os trabalhos da CPI do MST, por parte dos deputados Coronel Zucco (Republicanos), presidente da comissão, e Ricardo Salles (PL), ex-ministro do meio ambiente no mandato de Bolsonaro, famoso pela frase sobre “passar a boiada” contra lei de proteção ambiental enquanto a atenção da população se voltava à Covid-19. 

Em três ocasiões ela teve o áudio de seu microfone cortado enquanto fazia questionamentos relacionados aos temas debatidos na comissão. Zucco cortou o microfone de Sâmia duas vezes. 

Em uma delas, Sâmia lia trechos da Constituição, fazia perguntas e questões de ordem ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado. Ela teve o áudio de seu microfone cortado Coronel Zucco, sob a alegação de que as questões levantadas por ela eram “protelatórias”. 

Em outra ocasião da mesma CPI, o áudio foi cortado enquanto a parlamentar lia a notícia de que a investigação contra o deputado bolsonarista por atos antidemocráticos tinha sido retomada a pedido do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal (STF).

Diante da repetição de ataques, ela afirmou que Zucco “depois não sabe porque a PGR está nas costas dele”, investigando o deputado por violência de gênero, devido a essa conduta de cortar a fala de parlamentares mulheres durante discussões na Câmara. 

Na terceira vez, foi Ricardo Salles quem cortou o microfone de Sâmia durante os trabalhos da CPI. A deputada afirmou que a polícia foi chamada para destruir barracos em que havia gente morando, e lembrou que Salles sempre acusa o deputado federal Guilherme Boulos (Psol-SP) de invadir a casa alheia, mas que é ele e seu grupo político que faz isso. 

Irritado com as críticas, o ex-ministro do Meio Ambiente cortou o áudio do microfone de Sâmia para interrompê-la e afirmar que não havia ninguém vivendo nos barracos que foram derrubados.

Em uma das confusões que ocorreram durante a CPI, Zucco, que é bolsonarista, ameaçou a deputada, questionando “qual é o seu objetivo, deputada Sâmia? Quer que eu encerre a sessão?” e, na mesma frase, mandou que ela “fique calada”. Em seguida, Salles sugeriu que os demais deputados fizessem uma representação conjunta contra ela. 

Ao iG , a deputada afirmou que entraria - e entrou mesmo - com uma representação no Conselho de Ética contra os deputados Coronel Zucco e Ricardo Salles, denunciando os dois por violência política de gênero. 

“Nós temos um levantamento feito pelo nosso mandato e pelo MPF, sobre todas as interrupções, ofensas e xingamentos que eu e outras parlamentares membras da CPI sofremos desde o primeiro dia. Não me surpreende que agora eles tentem me enquadrar no Conselho de Ética, tendo em vista que é isso que eles tentam fazer desde o primeiro dia na CPI. Em nenhum momento em que eu fui interrompida, ofendida e humilhada o relator saiu em minha defesa. Ao contrário, ele era um dos principais agentes dessas ações. Desde o primeiro dia essa CPI tem sido palco de ofensas, misoginia e tentativa de criminalização de movimentos sociais”, disse a parlamentar.

Na visão da doutora em ciência política, Priscila Lapa, já era esperado que essa fosse uma legislatura especialmente difícil, devido ao perfil de parlamentares eleito, com muitas lideranças políticas envolvidas em polêmicas e “pautas extremamente controversas do ponto de vista da discriminação, reforçando bandeiras históricas de uma cultura política masculina e machista”.

Priscila, que também é analista de Políticas Públicas no Sebrae Pernambuco e professora universitária, explica que toda a violência política se dá “como uma resposta que busca a reafirmação do status quo. 

“Nesse sentido, à medida em que avança na agenda da sociedade essa pauta de ampliação da representação feminina, ao mesmo tempo, as forças que resistem a esse avanço vão eclodir”, disse a doutora. 

Em sua análise, a Priscila Lapa pontua o avanço de mecanismos legais e percepções de instâncias do Poder Judiciário que permitem, em algum grau, mediar os embates da Câmara quando eles não se resolverem dentro dela. 

“O judiciário tem sido muito acionado no Brasil nesse sentido nos últimos anos. Ao mesmo tempo em que a gente vê essa resistência ao avanço da participação feminina, vemos também que existem estruturas normativas para dar conta dessa resistência. É na força da caneta, na força da lei, mas a gente vai avançando no Brasil em relação a isso. Essa resistência no Congresso será quebrada, mas não haverá consenso, haverá luta.”

Centrão tenta “fritar” ministras 

Nem só de ataques diretos, interrupções e pedidos de cassação “vive” o machismo no meio político. A cobiça por cargos e espaços nas estruturas de Governo sempre existiu no Congresso Nacional, mas se tornou mais evidente quando quadros de partidos do grupo conhecido como “centrão” passaram a exigir uma “cota” maior de participação na gestão Lula 3, tendo como alvos prioritários todos os ministérios que estão sob o comando de ministras mulheres.

Nísia Trindade, ministra da Saúde, chefia pasta que é a principal cobiça do centro político
Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
Nísia Trindade, ministra da Saúde, chefia pasta que é a principal cobiça do centro político


Ministras como Marina Silva (Meio Ambiente), Sônia Guajajara (Povos Originários), Nísia Trindade (Saúde) e Esportes (Ana Moser) sofreram com parlamentares que cobiçam seus cargos e/ou desejam tirar poder e atribuições do “guarda-chuva” de suas respectivas pastas. 

Para a doutora em ciência política, Priscila Lapa, “um dos [maiores] calos” da terceira era Lula é a mudança nas bases da relação com o Congresso. “Parece que o que era suficiente para a relação fluir em mandatos anteriores, não é suficiente no momento”, explicou ela. 

Na análise de Priscila, prerrogativas que antes eram do Executivo começaram a ter um elemento de contribuição maior do Legislativo. “Isso, com o tempo, encarece as relações políticas, implica uma relação com os atores políticos diferente do que Lula estava habituado.”

Além disso, ela explica que fazer composições políticas através de reforma ministerial é “um clássico” no dia a dia da política, o que pode, sim, forçar Lula a fazer algumas concessões. Seu desafio, em meio a tudo isso, é encontrar espaços para aumentar a base aliada, mas sem ceder à pressão machista exercida pelo Legislativo, mantendo as ministras em seus cargos.

“Existe, sim, um claro incômodo do centrão com mulheres que foram colocadas nesses cargos. Para eles, talvez não faça sentido essa conexão de pautas, entre o fato de ter uma mulher liderando e algumas pastas que estão sob o comando de mulheres. É por aí que vão começar a tentar minar as pautas identitárias, já que eles não têm compromisso com isso”, afirma Priscila. 

Até o presente momento,  Lula tem batido o pé, afirmando e reafirmando que as ministras Ana Moser e Nísia Trindade não serão substituídas. A pressão por cargos e espaços no governo, entretanto, continua - e tende a crescer após o fim do recesso parlamentar, em agosto.

Na visão de Priscila Lapa, “Lula vai tentar ao máximo descaracterizar essa associação com o fato de serem mulheres”. A doutora em ciência política concluiu sua análise apontando um alto risco para o presidente, caso opte por ceder cargos atualmente ocupados por mulheres:

“Por mais que seja um governo que busca uma frente ampla com composição mais plural, existe um compromisso. As pessoas passaram quatro anos esperando o momento de trazer essa agenda de volta com toda a força, então é meio imperdoável. Acho que ceder e retirar mulheres pode, sim, ser um enfraquecimento que causa danos estratégicos e eleitorais, mais que mantê-las. Decidir manter é pagar um preço de negociação, e ele vai ter que encontrar outros caminhos de negociação com o centrão. Talvez, simbolicamente, a resistência traga mais ganhos que perdas para Lula”.

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