O presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou na quinta-feira (4), em reunião com pastores da Assembleia de Deus, em São Paulo, que busca impor, por meio das Forças Armadas, a condução de eleições transparentes no Brasil . Segundo especialistas ouvidos pelo iG , no entanto, a instituição nada tem a ver com a fiscalização das eleições ou de quaisquer outros processos políticos. Este papel cabe à Justiça Eleitoral.
A função das Forças Armadas nas eleições é limitada e se resume a duas questões apenas: segurança e logística. Isso significa que cabe às Forças Armadas, assim como a outras instituições do Estado, auxiliar no transporte de urnas eletrônicas para locais de difícil acesso e garantir a segurança da votação em municípios onde haja a possibilidade de conflitos. Mas não cabe à instituição fiscalizar ou validar a votação.
"A ideia de que as Forças Armadas devem validar um processo democrático é uma ofensa a um poder constituído que já tem essa autorização, que é o poder judiciário", afirma o cientista político Hesaú Rômulo, professor da UFT (Universidade Federal do Tocantins).
"A atribuição das Forças Armadas nas eleições não deve ultrapassar a de de quaisquer outras instituições do Estado, como a PM (Polícia Militar), que fica nas zonas eleitorais para evitar possíveis conflitos", diz a pesquisadora Carolina Botelho, do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e de Opinião Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Os especialistas lembram que, desde a redemocratização — ou seja, desde 1985, com o fim da ditadura militar —, nunca houve um período eleitoral em que o papel das Forças Armadas nas eleições estivesse em pauta. Outras questões, como a confiabilidade das urnas, sistema impresso de votação e a possibilidade de o presidente não aceitar o resultado das eleições também não eram assunto. Para eles, o fato de a sociedade estar discutindo o papel das Forças Armadas nas eleições é um sintoma de que as instituições democráticas estão sob ameaça.
De acordo com Rômulo, vários cientistas políticos, inclusive de fora do Brasil, enxergam que há uma intenção de criar, no Brasil, uma atmosfera política como foi o 6 de janeiro, nos Estados Unidos. Nessa data, em 2021, centenas de apoiadores do ex-presidente dos EUA Donald Trump invadiram o Capitólio, a sede do Congresso americano, em Washington, alegando fraude nas eleições. A suposta fraude nunca foi comprovada e, pelo contrário, foi desmentida pelas principais autoridades dos Estados Unidos.
Movimento do ministro da Defesa
A fala de Bolsonaro sobre a participação das Forças Armadas nas eleições não foi a primeira em que o nome da instituição foi introduzido em assuntos relativos às eleições presidenciais esta semana. Na quarta-feira (3), nove militares selecionados pelo Ministério da Defesa foram ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para iniciar uma inspeção do código-fonte das urnas eletrônicas
— algo que já foi feito em outubro do ano passado. À época, nenhuma irregularidade foi constatada. Ainda assim, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, solicitou novamente vistoria, em caráter de urgência.
Segundo o site do TSE , a apresentação do código-fonte das urnas ocorre 180 dias antes da eleição, na sede do próprio órgão, para partidos políticos, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e o MP (Ministério Público). Na ocasião, os representantes podem solicitar melhorias, tirar dúvidas ou conversar com a equipe técnica para mais esclarecimentos.
"É algo totalmente excepcional", diz Rômulo sobre a nova solicitação do ministro da Defesa para acessar o código-fonte das urnas. "Me parece mais um movimento do governo de colocar algum tipo de suspeição sobre a credibilidade das urnas. O momento de apresentar o código-fonte das urnas já aconteceu, isso foi noticiado. E, agora, a menos de dois meses das eleições, o ministro da Defesa fala: 'Queremos olhar de novo'. É uma etapa que não está prevista."
Carolina concorda. Para ela, as Forças Armadas, como uma instituição do Estado, podem ter dúvidas e a Justiça Eleitoral está aí para saná-las. O pedido do ministro da Defesa, no entanto, não parece ter essa finalidade.
"A meu ver, trata-se de uma tentativa de colocar as Forças Armadas como protagonista de um evento do qual elas não têm qualquer relação e criar um cenário político confuso", afirma.
Democracia em risco
Para ambos os especialistas, as últimas movimentações de Bolsonaro — incluindo os ataques às urnas no último dia 18, em reunião com embaixadores
— e do ministro da Defesa são preocupantes e indicam que poderia haver um golpe em curso. Carolina acredita que as tentativas do governo de tentar desestabilizar o cenário político refletem uma fraqueza eleitoral do próprio Bolsonaro, que está atrás nas pesquisas em relação a seu principal adversário, o ex-presidente Lula (PT).
É difícil saber, diz a pesquisadora, se um golpe poderia, de fato, se concretizar. Mas é preciso que a sociedade brasileira esteja atenta. O Brasil, lembra, já sofreu uma ditadura militar, que perdurou por mais de 20 anos.
"Nós não deveríamos minimizar essas ameaças à nossa democracia e ao sistema político, pelo contrário. A sociedade civil e instituições públicas e privadas devem se unir e confrontar essas ameaças, mostrando que o Estado Democrático de Direito irá prevalecer", afirma.
Rômulo, que reconhece fazer uma leitura alarmista da situação, lembra que a democracia é um exercício, que pode ser construído ou desconstruído a depender do comprometimento que os atores políticos têm com esse regime. Portanto, é preciso ficar muito atento, ainda mais em um país com histórico de governos autoritários. Em consonância com Carolina, ele também acredita que há um golpe em curso. Este estaria sendo articulado desde o ano passado, com o reaparecimento do debate sobre voto impresso, ou até antes.
Para ele, a primeira parte do governo Bolsonaro foi marcada por muitos confrontos e, quando o presidente percebeu que nenhuma ruptura democrática iria se concretizar, se acomodou com as forças do chamado centrão para ter alguma governabilidade e chegar ao fim do mandato. Agora, às vésperas da eleição, resta a ele tentar colocar em xeque o sistema eleitoral brasileiro, como estratégia política.
"Há um interesse do governo Bolsonaro em dar um golpe? Claramente sim, acho que não há dúvida de que todas as falas do presidente até hoje sugerem um interesse muito grande em uma ruptura democrática. Existem condições para isso? Eu acredito que não", diz.
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