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Paulo Jacob
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Ao ler a  Mensagem do Executivo ao Congresso para o ano de 2022, na última quarta-feira (2), o presidente Jair Bolsonaro (PL) fez um balanço das ações de seu governo no último ano. Nenhuma palavra foi dedicada à cultura, à educação ou aos direitos da comunidade LGBTI+, para citar alguns exemplos.


Sobre a saúde, repetiu que a gestão se dedicou a duas frentes no combate à pandemia:  salvar vidas e manter empregos. Na prática, o presidente se posiciona a favor de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19, em diversas ocasiões, se recusa a usar máscaras, diz que ainda não se vacinou e promoveu uma série de aglomerações , atos que favorecem a transmissão do coronavírus.


Diante desses e outros fatos, a maioria (54%) dos brasileiros reprovou a atuação do governo no combate à Covid-19, segundo a pesquisa Datafolha publicada em setembro passado.


Crítico do governo Bolsonaro, o médico, professor e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina , credita aos estados e municípios o mérito pelo avanço da vacinação. "O Ministério da Saúde não está tendo ação sobre a saúde pública. Não governa. O que está acontecendo é que estão desmontando o pouco que nós tínhamos conseguido construir de SUS. As coisas só não estão caindo porque alguns estados e municípios estão conseguindo segurar", afirma em entrevista ao iG.

Homem branco, com barba grisalha, camisa social branca e suspensório.
Arquivo pessoal

Gonzalo Vecina, um dos fundadores da Anvisa


Para ele, em meio ao "desastre" enfrentado no Brasil, o próximo governo vai precisar buscar formas de "conviver com o equilíbrio fiscal" sem essa proposta "ignorante e sacana" de teto de gastos, que, na avaliação do professor, inviabiliza a garantia de direitos básicos para a população.


Essa análise é semelhante a da também médica e reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Denise Pires. Com sua experiência na elaboração de orçamentos, ela ressalta que é possível economizar sem cortar verba de setores importantes para o desenvolvimento do país.

"Se você tem uma emenda constitucional que define um teto e aquele teto é atingido, isso não quer dizer que ele tenha que ser igual pra todas as áreas. E eu não consigo entender que não haja uma reforma política, que não haja cortes na verba que é destinada aos parlamentares, pra emendas parlamentares ou o chamado orçamento secreto, seja lá que orçamento for, e haja cortes em educação, ciência e tecnologia. Não cortar em áreas que são muito menos importantes que o avanço do país é uma opção de governo", opina.

Denise Pires, reitora da UFRJ
Artur Moes
Denise Pires, reitora da UFRJ

Por isso, ela sugere que se questione aos pré-candidatos à Presidência da República qual o posicionamento deles em relação ao assunto, especialmente no caso dessa emenda que depende de votação no Congresso.


Outra área cujos representantes acumulam críticas contra o governo é a cultura. Um dos primeiros atos da gestão foi extinguir o MinC, em janeiro de 2019.


De lá para cá, o governo acumula acusações de censura e ataques à classe artística. Segundo o produtor-executivo do Festival de Jazz do Capão, Tiago TAO, se trata de uma política em prol do alinhamento político.


"A marca é o trabalho ideológico de favorecer projetos que estão alinhados com o dele e de censurar ou então dificultar a aprovação de projetos que eles entendem que não estão alinhados com o que o governo federal pensa, politicamente falando", aponta.


Como exemplo, TAO menciona projetos que exploram a questão LGBTI+ ou que possuem propostas mais ousadas que promovem uma produção artística "de ruptura", o que bate de frente com o conservadorismo pregado pela gestão federal.


No caso da comunidade LGBTI+, inclusive, todos os avanços foram garantidos pelo Poder Judiciário. É o que diz Toni Reis, presidente da Aliança LGBTI+. 


Ele espera que a eleição de mais candidaturas progressistas possa "positivar" essas conquistas no Legislativo, pois o que se viu nos últimos anos foi um "desmonte das políticas públicas da educação e, principalmente, da educação para a diversidade".


Em meio ao cenário pré-eleitoral, o iG pediu aos especialistas entrevistados avaliações sobre o governo Jair Bolsonaro em suas respectivas áreas. Confira abaixo o que eles dizem e o que esperam ser feito para reverter o quadro de estagnação.

Educação

Crítica da atuação do governo Jair Bolsonaro na pandemia, a médica, professora e reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Pires, avalia que o retrocesso na área foi impulsionado no governo Michel Temer, com a "emenda do fim do mundo" aprovada pelo Congresso Nacional em 2016.


"Uma das metas mais importantes pro Plano Nacional de Educação é destinar 10% do Produto Interno Bruto (PIB) pra área e a Emenda Constitucional 95 acabou com esse sonho", lamenta ao se referir à emenda do "teto de gastos".


A professora ressalta que, ainda que a medida seja importante para conter gastos públicos, áreas de menor importância para o avanço do país deveriam concentrar a redução de verba, pois os recursos de setores como educação, ciência e tecnologia deveriam ser tratados como investimento.

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"Quais os candidatos que se comprometerão em derrubar essa emenda no Parlamento? É pra derrubar ou não precisa derrubar?", indaga, ao pontuar questões que devem ser feitas aos pré-candidatos à Presidência da República. Denise frisa que se a opção for manter a emenda, os políticos precisarão se comprometer com uma redistribuição da verba que não mais penalize áreas essenciais para a população, como educação e saúde.


Esse compromisso, no entanto, não é visto no governo atual. "Nós escutamos no início do atual governo que o ensino superior já era muito bem financiado, como se isso fosse verdade — e não é —, e que iam investir mais no ensino básico. Não investiram no básico e cortaram os investimentos do superior. Então houve corte em todo o sistema educacional, Ministério da Educação, cortes que levam a um cenário dramático, que é de um país que anda pra trás", analisa a professora.


Para reverter esse cenário, que nas palavras dela mantém o Brasil numa posição "periférica, subserviente e dependente de importação de alta tecnologia", é preciso investir na qualidade do ensino superior, que depende de investimentos no ensino básico, que, por sua vez, para ter qualidade precisa de professores bem qualificados, o que é feito por meio dos mestrados profissionais no ensino superior. Ou seja, um ciclo que exige atenção para o setor como um todo.

Saúde

"Desastrosa". É como o médico, professor e ex-presidente e um dos fundadores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina, define a situação no setor da Saúde nos últimos anos. "Está dando continuidade ao governo [Michel] Temer, que já foi desastroso também com o ministro [Ricardo] Barros. Desastre do ponto de vista sanitário, do ponto de vista econômico, do ponto de vista da corrupção", afirma o professor, ao avaliar o governo Jair Bolsonaro.


Para especificar suas críticas, Vecina cita a Emenda Constitucional 95/2016, que estabeleceu o teto de gastos. O professor acredita que a medida "está sendo absolutamente destrutiva com todo o setor social", já que culminou em cortes para o orçamento de diversas áreas.


Desse modo, ele aponta que o primeiro grande desafio para um próximo governo será o de encontrar novas maneiras de manter um equilíbrio fiscal sem prejudicar direitos básicos da população, como saúde e educação. "O teto de gastos prende o investimento público em qualquer área naquele ponto, agora tudo que for pagamento de juros — e o Banco Central aumentando juros todo mês — tem dinheiro pra pagar. Nós estamos pagando juros, não está atrasando nem um tostão. Mas fome, morte, falta de investimento na educação isso pode", rechaça.


Diante dessas críticas, Vecina defende que o segundo passo para a recuperação do país é a criação de um plano emergencial para as áreas sociais porque estima que o "Brasil estará de joelhos" ao final deste governo.

Cultura

Produtor-executivo do Festival de Jazz do Capão, Tiago TAO acredita que a marca do governo Bolsonaro na cultura é um "claro beneficiamento para quem o apoia". Ele aponta que, apesar do discurso do presidente, de que os governos de esquerda direcionavam recursos a projetos com essa mesma ideologia, a prática é hipócrita.


"Não é nenhuma política que eu possa chamar de não-cultura. Ele é contra projetos que pensam diferente do pensamento que eles estão estabelecendo ali no governo federal porque, ao mesmo tempo que existe uma diminuição na quantidade de projetos aprovados na Rouanet , a mesma lei está sendo usada para aprovar uma série de outros projetos que são culturais também, mas que tem uma afinidade com o discurso do governo", critica TAO em entrevista ao iG.


Com isso, ele aponta que projetos com viés ou valores contrários aos do governos são desprestigiados, recebem menos recursos ou até se tornam alvo de censura. Foi o que aconteceu com o festival, com oito edições já realizadas na Chapada Diamantina, na Bahia.

Arte do Festival de Jazz do Capão
Facebook/ Festival de Jazz do Capão
Arte do Festival de Jazz do Capão

Em julho do ano passado, a Fundação Nacional das Artes (Funarte) emitiu um parecer contrário à captação de recursos para o evento via lei de incentivo . Entre as justificativas, a Funarte citou uma publicação do Facebook em que a página do evento o descrevia como um "festival antifascista e pela democracia", argumentou que "o objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma" e concluiu que apoiar o evento resultaria em "desvio de objeto e risco à malversação do recurso público incentivado com propositura de indevido uso do mesmo". O caso foi parar no Ministério Público Federal (MPF).


"O festival não se posicionava contra o governo federal, era contra o facismo, com um discurso mais genérico, sem citar o governo, mas ele se sentiu ofendido", comenta TAO após pontuar que houve outros casos de censura a projetos com proposta "de ruptura ou mais ousados", considerados inadequados pelos gestores do país.


Por outro lado, o produtor pondera que em 2021 o setor cultural teve uma conquista importante no contexto da pandemia: a Lei Aldir Blanc, que garantiu o repasse direto de recursos da União para os municípios de todo o país. "Não por conta do governo federal apenas, mas por conta de uma série de fatores e de coletivos", frisa. A categoria agora luta para que o benefício seja anual e não um recurso de emergência.


Diante desse cenário, o produtor acredita que o principal desafio para o comando do setor cultural é equipar os órgãos ligados à cultura com pessoas técnicas, com capacidade de realizar o trabalho de forma dinâmica e eficiente. "Não é simplesmente ter o ministério. Isso é importante simbolicamente, sim. Mas é importante ter um departamento, seja ele ministério ou secretaria que funcione, um departamento que tenha um corpo técnico eficiente pra que a máquina não fique parada, travada, atrasando a tramitação dos projetos", avaliou.

Direitos LGBTI+

Assim como Gonzalo Vecina, o presidente da Aliança Nacional LGBTI+, Toni Reis, afirma que os últimos anos foram marcados por um retrocesso no país. "Nós percebemos um desmonte das políticas públicas da educação, principalmente a educação para a diversidade nas questões pra comunidade LGBTI+. Nós tivemos poucos materiais, nenhuma capacitação e tampouco incentivos à comunidade LGBTI+", aponta Reis, que é doutor em Educação.


Em meio a isso, o presidente da Aliança ressalta que todos os direitos reconhecidos pelo grupo foram por meio do Supremo Tribunal Federal (STF), como o fim das restrições para que homens gays possam doar sangue , em 2020, e a permissão para que transexuais e trangêneros possam alterar seus nomes no registro civil sem necessidade de cirurgia, em 2018.



Assim, a Aliança, que se dedica a promover e defender os direitos humanos da comunidade LGBTI+, reforça a necessidade de eleger candidaturas progressistas que referendem essas conquistas também no Legislativo. 


"As mulheres conseguiram muito mais direitos depois que puderam votar e ter representantes dentro do Congresso Nacional. Da mesma forma, a população negra. Então, nesse sentido nós precisamos aprender com essas outras minorias sociológicas de que é só através do poder do voto que nós vamos conseguir ter influência política", defende. A entidade define a conquista efetiva de direitos como sua principal pauta a ser apoiada nas eleições deste ano.

** Ailma Teixeira é repórter nas editorias Último Segundo e Saúde, com foco na cobertura de política e cidades. Trabalha de Salvador, na Bahia, cidade onde nasceu e se formou em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 2016. Em outras redações, já foi repórter de cultura e entretenimento. Atualmente, também participa do “Podmiga”, podcast sobre reality show, e pesquisa sobre podcasts jornalísticos no PósCom/Ufba.

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