A guerra na Ucrânia não começou no dia 24 de fevereiro de 2022 para as mulheres da família Savchenko. A mãe Valentina e as filhas Anna e Maria tiveram de fugir de Donetsk, uma das províncias do Leste ucraniano reconhecidas como independentes por Moscou este ano, em 2014, quando a cidade foi invadida por tropas russas. A família foi para a capital Kiev.
"Muita gente pensa que a guerra começou há um mês. Na verdade, começou há oito anos para nós", conta Valentina.
Ucraniana de 39 anos, Maria é casada com um diplomata brasileiro que conheceu em Kiev e tem uma filha de dois anos e oito meses, nascida em Miami. Eles moram em Brasília há dois anos.
Sua mãe, Valentina, chegou ao Brasil no dia 10 de março, em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB). Aos 78 nos de idade, ela passou fome, sede e frio até chegar à fronteira da Ucrânia com a Polônia. Deixou para trás a filha mais venha, Anna, de 45 anos, que preferiu ficar em Kiev junto com o filho Dmitri —que, por ser homem e ter 23 anos, foi impedido de deixar o país, para enfrentar os russos.
"Minha mãe era russa e os bolcheviques tomaram tudo da família dela: casa, gato, dinheiro, tudo. Então, eles fugiram para a Ucrânia, porque lá tinha comida. Mas depois veio a fome, a Segunda Guerra Mundial... Enfim, essa história trágica nunca parou para a nossa família. E desde que eu nasci, nossos vizinhos [a Rússia] nunca nos deixaram em paz", conta Valentina, que começou um curso de português com uma professora voluntária ao chegar a Brasília.
Dias antes dos ataques à Ucrânia, ninguém acreditava no pior. Por isso, apesar da insistência de Maria para que a família viesse para o Brasil, todos resistiam.
"Mesmo quando Kiev foi atacada, as pessoas tinham a impressão que não iria durar muito tempo. Afinal, a 'operação militar especial' definida pelos russos nos foi apresentada como se não fosse uma guerra. Mas quando as cidades são bombardeadas, quando as crianças morrem, quando perdemos parentes e amigos, isso se chama guerra mesmo. Eu dizia: saia daí, e minha mãe falava para ficarmos tranquilos", lamenta Maria.
Já Valentina relata que os bombardeios começaram cedo em Kiev e todos correram para garagens, estações de metrô e outros locais para se protegerem. Ela e o neto se abrigaram no hotel onde Anna trabalhava.
"As mulheres faziam comida, os homens protegiam o local e havia muitos soldados russos em Kiev, que já chegavam tirando pessoas de dentro dos carros e atirando. No começo, diziam que os alvos eram apenas militares, mas bombardeavam aeroportos, centrais elétricas, hospitais".
Com a situação cada vez pior e diante de perdas importantes, como a morte do neto de um primo bem próximo, abatido quando tentava proteger os civis, Valentina concordou em fugir de Kiev. As embaixadas do Brasil na Ucrânia e outros países fronteiriços iriam retirar brasileiros e parentes de cidadãos nacionais da região e um avião da FAB chegaria em breve à Polônia.
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Com a roupa do corpo e apenas o passaporte ucraniano dentro de uma pequena bolsa tiracolo, Valentina se despediu da filha mais velha e do neto. Saiu do hotel e foi para uma estação ferroviária. Sozinha, encontrou centenas de mulheres e crianças sem saber para onde ir. Pegou um trem para Lviv em uma viagem que durou dez horas.
"As pessoas não tinham nem banheiro para usar. Uma pessoa cedeu o lugar para eu sentar, devido à minha idade".
Ao chegar a Lviv, já era noite. Ninguém podia ficar na rua, por causa do toque de recolher. Valentina encontrou um lugar para se sentar e ficou na estação ferroviária até o dia amanhecer. Sentia-se mais segurança, em companhia de outras pessoas. Depois, já orientada pela família, foi para um hotel onde havia brasileiros, reservado pelo consulado do Brasil.
"Lá eu pude descansar, tomar um banho, comer. Fiquei duas noites no hotel".
Em seguida, todos entraram em um ônibus e foram para Varsóvia, local de partida da aeronave de FAB. Os trâmites para que ela pudesse vir para o Brasil foram rápidos e a regularização do passaporte durou menos de uma hora.
"Penso todos os dias na minha filha Anna e no meu neto. Não sei se vou voltar. Meu futuro é incerto", diz ela.
Valentina disse que o que mais a encanta no Brasil são as pessoas. Alegres, acolhedoras, simpáticas. A filha Maria arranjou um piano para a mãe, instrumento que Valentina tocou a vida inteira.
"Fico encantada com esse sorriso largo de vocês. É um milagre, uma maravilha. Espero que nunca saibam o que é uma guerra".
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