A pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) escancarou dificuldades do governo brasileiro em fazer negociações bilaterais para a compra de doses de vacinas e insumos para a produção de imunizantes. Tendo em vista o comportamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e de integrantes da área diplomática da alta cúpula do governo, especialistas ouvidos pelo iG apontam momentos ainda mais difíceis quando o mundo retomar negociações após o controle da Covid-19 .
Na avaliação de Leandro Consentino, professor de Relações Internacionais do Insper, é natural que nesse momento os países voltem seus olhos para problemas internos, sobretudo quando se fala na garantia de que suas populações sejam imunizadas o quanto antes ou na proteção para que as contaminações diminuam.
O problema, segundo o especialista, será no pós-pandemia, quando o fluxo de relações diplomáticas entre os países se normalizar. "Não vai ser um problema que nós vamos encontrar agora, mas quando houver a reconstrução de ordem mundial no pós-pandemia", diz o professor do Insper. "Por ter essa grande divergência de consensos mundiais, ainda mais quando se fala em vacinas, o Brasil vira um grande ator pária no cenário internacional", emenda.
Um dos exemplos que Consentino cita é o de Israel , um dos poucos aliados que ainda restaram ao Brasil. Nesta semana, uma comitiva brasileira viajou ao país para conhecer o spray anticovid ainda em estudo e a estratégia de vacinação implantada . Durante um encontro com o ministro de Relações Exteriores israelense, Gabi Ashkenazi, o chanceler Ernesto Araújo foi advertido para colocar uma máscara antes de posar ao lado dele para uma foto.
"O Brasil sempre teve boas relações internacionais e não são quatro anos que vão acabar com isso, mas agora nós podemos ver também que a aliança com os Estados Unidos não eram com o país, mas com Donald Trump . A diplomacia brasileira não pode ser feita seguindo esse caráter personalista, por afinidades pessoais ou calcadas em ideologia. Nós precisamos de uma coordenação que considere os interesses do Brasil", afirma o especialista.
A análise é corroborada pelo professor de Relações Internacionais Vinícius Rodrigues Vieira, da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), que fala que um dos principais prejuízos do Brasil pode ser a queda nas interações comerciais e a entrada em um "ciclo contínuo de isolamento" devido às escolhas que Bolsonaro faz para conduzir a agenda diplomática do País.
"Há uma mudança de centros de poder no mundo, o que ficou evidente principalmente durante a pandemia, onde o mundo se voltou a países como a China e a Índia em busca de insumos e vacinas para o combate à Covid-19 . Havendo essas mudanças, o Brasil dificilmente se sentará em cadeiras de fóruns econômicos internacionais econômicos", diz Vieira.
O professor da FAAP afirma que tal possibilidade se torna ainda maior se o Brasil continuar a defender o nacionalismo como forma de demonstrar autonomia. "O Brasil segue essa linha de que, ao reafirmar sua soberania e defender o nacionalismo, nós vamos ficar mais autônomos, quando, na verdade, acontece o contrário. Países como o Brasil, que não têm poderio militar grande, tendem a confiar na lei internacional do multilateralismo para ter poder. Se ele bate na mesa, ele acaba ficando isolado", afirma.
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Efeito Lula cria "bafo na nuca" de Bolsonaro
Esta semana, no entanto, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deu sinais de que poderia mudar esse comportamento e apareceu usando máscara em uma solenidade do Palácio do Planalto no qual ele sancionou projetos que facilitam e aceleram a compra de imunizantes.
O gesto do presidente foi visto como uma tentativa de aplacar o desgaste com o avanço da nova onda do novo coronavírus. O professor de Relações Internacionais da FAAP, no entanto, acrescenta como motivação para esse acontecimento a entrada do ex-presidente Lula no xadrez político.
"Gostemos do Lula ou não, ele consegue provocar essa mudança. Com as críticas do Lula ao combate à pandemia feito pelo Brasil, nós vimos o Bolsonaro já querer marcar posição desde já. Então pode haver uma grande influência, já que a imagem de um presidente fraco internamente também é vista como fraco externamente", diz Vieira.
Para Consentino, isso não é uma responsabilidade de Lula, embora ele também reconheça que o petista tem esse poder. "A presença dele [Lula] no cenário político faz com que o Bolsonaro comece a se mexer da zona de conforto. Ele faz o que a gente chama de ‘colocar um bafo na nuca’ do Bolsonaro", afirma o professor do Insper.
Porém, o fator de mais preocupação de Bolsonaro, na visão de Consentino, é que alguém possa atrapalhar a sua agenda de conforto para 2022 e ameaçar sua possível reeleição. Com o Lula voltando a ter o discurso que ele tinha em 2002, de mais alinhamento ao mercado, ele pondera que Bolsonaro pode mudar seu comportamento tanto na política interna quanto externa.
"O Bolsonaro vai estar em uma sinuca de bico. Ele vai ter que continuar flertando com a base social mais ligada à economia liberal e acentuar a aproximação com seus apoiadores mais ideológicos. Vejo que ele vai continuar com esse jogo duplo", afirma.
O ex-presidente Lula teve todas as suas condenações na Operação Lava Jato após uma decisão do ministro Edson Fachin , do Supremo Tribunal Federal (STF), determinar que o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, então comandada por Sergio Moro , não tinha competência para analisar os casos do petista.
O entendimento de Fachin foi o de que, por conta de as investigações não envolverem a Petrobras, o julgamento em primeira instância não deveria ficar em Curitiba.
O movimento do ministro do STF foi uma manobra para tentar proteger a Lava Jato e evitar que a Corte tivesse que julgar um recurso da defesa de Lula entrou alegando a suspeição de Moro . A leitura dele foi a de que, caso o recurso fosse aceito, seria aberta uma avenida para que outros condenados utilizassem a mesma estratégia.