Entrada proibida: imigrações desafiam o mundo a recobrar noções de solidariedade

Debate sobre fechamento de fronteiras ganhou força em ano marcado pela entrada de venezuelanos no Brasil e por caravanas rumo aos Estados Unidos

Imigrações de venezuelanos desafiaram governos de Roraima e federal ao longo do ano de 2018
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasi - 4.5.18
Imigrações de venezuelanos desafiaram governos de Roraima e federal ao longo do ano de 2018

De um lado, famílias que se agarraram à esperança de dias melhores para tomar coragem de deixar tudo para trás e partir viagem levando consigo apenas algumas trouxas de roupa em busca de um recomeço. Do outro, o risco de colapso de serviços essenciais, o surgimento de epidemias e o aumento da violência. Governos locais e federais se viram obrigados a equacionar cada um desses fatores em busca de respostas ao enorme desafio que as imigrações apresentaram ao longo do ano.

As imigrações internacionais resultam de uma série de fatores, conforme explica a professora Bela Feldman-Bianco, uma das organizadoras do livro "Migração e exílio" (Editora UFV). "Estamos confrontando mais guerras, desastres climáticos e o aumento da pobreza no contexto das atuais políticas neoliberais e um capitalismo ultradestrutivo – isso tudo ao mesmo tempo", diz a professora, que considera um "equívoco" a taxação de correntes migratórias como sendo 'crises'. "Migrar deveria ser um direito humano. O problema é como governos e políticas nacionais percebem esses 'outros' migrantes." 

A migração foi amplamente discutida ao longo dos últimos anos especialmente na Europa , destino de milhares de imigrantes que fugiam de conflitos armados e da miséria no Oriente Médio e na África. Mas, em 2018, a questão bateu forte à nossa porta, com a chegada de milhares de venezuelanos pela fronteira em Roraima.

Foto: Agência Brasil
Busca por emprego e medo da violência motivaram imigrações ao longo de 2018

A fuga dos cidadãos do país vizinho não teve início neste ano, mas se intensificou conforme a crise do governo chavista de Nicolás Maduro recrudescia. A Prefeitura de Boa Vista, capital de Roraima, chegou a calcular que mais de 40 mil venezuelanos já estavam vivendo na cidade, número que representa cerca de 10% da população local, que totaliza cerca de 330 mil habitantes.

A superlotação do município e de seus arredores provocou crise humanitária e muitos dos refugiados que vieram ao Brasil em busca de melhores condições de vida deram de cara com uma realidade igualmente dramática .

Muitos foram submetidos a condições de trabalho análogas a de escravos e sofreram discriminação salarial em razão de sua cidadania. Várias crianças venezuelanas passaram a pedir esmola nas ruas de Boa Vista e mulheres contratadas como empregadas domésticas sofreram abusos sexuais e foram prostituídas, segundo denunciou a procuradora Priscila Moreto em pleno Senado Federal, em fevereiro.

A população local também sofreu com o novo cenário: houve aumento da violência e surto de sarampo importado pelos venezuelanos. Foram 25 casos suspeitos e 6 confirmados apenas nos primeiros meses do ano. De acordo com o último balanço do Ministério da Saúde, divulgado no dia 12 deste mês, o estado registrou ao longo do ano 349 casos da doença, que causou a morte de quatro pessoas.

Feldman-Bianco explica que o drama vivido pelos imigrantes longe de seus países passa pela cultura da população local e também pelo modo como o poder público lida com os refugiados.

"O 'outro', desconhecido, tende a ser discriminado, seja venezuelano, haitiano, colombiano ou brasileiro (imigrante em outros países). Existe maior xenofobia por parte da população em relação aos imigrantes não brancos, sejam eles negros, indígenas ou japoneses e chineses", diz a professora.

"Mas também há o papel do poder público ao nível local, estadual e federal. No caso dos venezuelanos que chegam a Roraima , houve uma militarização da questão migratória pelo governo federal e políticas de securitização ao nível estadual e local. Quem está lá representando o governo federal é o Ministério da Defesa e a polícia", complementa.

A citada "militarização" mencionada pela professora decorreu das ações adotadas pelo governo de Michel Temer (MDB). Ainda em fevereiro, em pleno Carnaval, o presidente interrompeu seu feriado para reunião com a governadora roraimense, Suely Campos (PP) e anunciou a  liberação de R$ 190 milhões para ações de assistência emergencial no estado. Temer prometeu "não descansar" até solucionar a questão que "aflige não só aos roraimenses, mas a todo o Brasil".

Foto: Ibama
Refugiados venezuelanos foram alvo de agressão em Roraima

Mas, apesar da promessa e dos recursos, os problemas no cotidiano de Boa Vista persistiram e a situação que já se mostrava insustentável degringolou de vez no fim de março. No dia 20 daquele mês,  moradores do município de Mucajaí atearam fogo nos pertences de refugiados e expulsaram venezuelanos que viviam em abrigo municipal da cidade. Em resposta, o Exército Brasileiro fixou força-tarefa para mediar a crise em Boa Vista, com a chamada Operação Acolhida.

A crise voltou a resultar em episódio de violência em agosto, quando grupos de moradores da cidade de Pacaraima atacaram um acampamento de refugiados usando armas, paus e bombas caseiras. Mais de 1.200 refugiados que estavam na cidade  cruzaram de volta a fronteira por medo de serem vítimas da violência dos moradores.

Para a professora Bela Feldman-Bianco, faltou estrutura para lidar com a situação em Roraima e houve demora no atendimento e no processo de interiorização, que é a transferência dos migrantes para outros estados. "Se há crise, é por falta de estrutura que afeta tanto os que vem de fora quanto os brasileiros. No caso dos venezuelanos, por exemplo, há pesquisas realizadas pelo Observatório das Migrações Internacionais da UNB (OBMigra) mostrando que a maioria é formada por profissionais com diplomas universitários 'necessários' ao mercado de trabalho. Os migrantes não são causadores de crises. Eles não são 'invasores'", afirma a especialista.

Foto: Marcelo Camargo/AgÊncia Brasil
Imigrações 2018: processo de interiorização levou migrantes para outros estados do Brasil

Todo esse caos decorrente da presença dos imigrantes em Roraima levou o fechamento da fronteira com a Venezuela a ser discutido na Justiça. A primeira a apresentar pedido nesse sentido, em abril, foi a própria governadora Suely Campos, que argumentou no Supremo Tribunal Federal (STF) que "nada efetivo" foi feito pelo governo Temer quanto à crise. 

A relatora do caso, ministra Rosa Weber, buscou conciliar os governos estadual e federal, até que um juiz federal acatou os argumentos de Suely em outra ação e determinou o fechamento da fronteira do País com a Venezuela sob o argumento de que havia  "permissividade excessiva" por parte das autoridades brasileiras.

A medida foi revogada, mas os problemas persistiram. Tanto que, já neste mês, o  presidente Temer decretou intervenção federal no estado por conta do “grave comprometimento da ordem pública” decorrente da crise na segurança e no sistema penintenciário de Roraima. A intervenção foi anunciada após relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) indicar "risco de colapso" na segurança pública roraimense.

A nova linha de atuação do poder público para reduzir "riscos", no entanto, não significa necessariamente a busca por soluções definitivas para a crise humanitária no estado. O próprio interventor federal, governador eleito Antonio Denarium (PSL), chegou a dizer em entrevista que pretende limitar a entrada de venezuelanos. Ele foi desautorizado horas mais tarde por Temer, que defendeu a manutenção de "política de apoio" aos imigrantes.

Imigrações em caravanas desafiaram Trump, nos Estados Unidos

Foto: Reprodução/ The Washington Post
Imigrações em foco: Pais e crianças vivem em péssimas condições na fronteira entre EUA e México

A miséria e a violência que levaram milhares de venezuelanos a deixarem suas casas rumo ao Brasil também fizeram com que famílias inteiras de países da América Central encarassem uma jornada ainda mais longa em busca do 'sonho americano'.

No segundo semestre do ano, milhares de migrantes de países como El Salvador, Guatemala e, principalmente, Honduras se organizaram em caravanas e pegaram a estrada em direção ao norte no intuito de acessarem o território dos Estados Unidos.

A pé, homens, mulheres, crianças, idosos e gestantes percorreram centenas de quilômetros sob sol e chuva até chegarem à fronteira com o México . Mas o presidente americano, Donald Trump, não gostou da notícia dos visitantes que se aproximavam.

Pelo Twitter, seu canal favorito de comunicação, Trump disse que as caravanas integravam "bandidos maus" e "membros de organizações criminosas", e pressionou as autoridades mexicanas a impedirem a passagem dos migrantes.

E assim foi em outubro, quando cerca de 4 mil pessoas ficaram presas na ponte que separa a Guatemala do México devido à ação das forças de segurança do país. Houve confronto no local e, assustados, muitos passaram mal ou decidiram retornar.

"As caravanas têm brigões muito duros. Eles lutaram forte e com muita violência contra as autoridades do México. Os soldados mexicanos ficaram feridos e foram incapazes, ou não tiveram vontade, de impedir a caravana", reclamou Trump. "Não vamos deixá-los entrar nos Estados Unidos. Nossas fronteiras são sagradas. DEEM MEIA-VOLTA!", escreveu o presidente americano em sua rede social.

Foto: NASA/Aubrey Gemignani - 23.7.18
Para barrar imigrações, Donald Trump pressionou mexicanos pelo Twitter

Para aqueles que passaram, governos locais e entidades da sociedade civil organizaram acampamentos para prestar assistência em cidades como Tapachula, Cidade do México e Tijuana.

Enquanto os migrantes descansavam, Trump decidiu enviar mais de 5 mil militares para reforçar a proteção da fronteira do país com o México. O republicano defende, desde sua campanha em 2016, a construção de um muro entre os dois países. Trump chegou a reservar US$ 5 bilhões do orçamento do governo para 2019 para a construção desse muro, mas a ideia causou discórdia no Congresso, que não aprovou o texto e levou o país a enfrentar paralisação federal (o chamado 'shutdown').

No mês passado, Trump deu um passo além em seu intuito de impedir a entrada de migrantes e  assinou ordem que suspende a concessão de refúgio a quem entrar ilegalmente nos Estados Unidos. Ao menos 2 mil famílias foram separadas por conta da política de "tolerância zero" com as imigrações ilegais.

Com a nova regra, muitos acabaram barrados na chegada aos EUA, sob a custódia da Patrulha Fronteiriça americana. Foi o caso de Jackeline Call, uma menina guatemalteca de sete anos de idade cuja histórica comoveu o mundo já neste mês. A menina acabou morrendo por desidratação e exaustão  após ela e os pais ficarem detidos por oito horas após a travessia ao sul de Lordsburg (Novo México).

Bela Feldman-Bianco considera que a alegada "crise" envolvendo as caravanas de migrantes "foram criadas pelas políticas draconianas" de Donald Trump .

A professora explica que o Brasil, hoje, está em um estágio diferente de países como os Estados Unidos em relação às imigrações, mas alerta para riscos de esse quadro mudar num futuro próximo. "O Brasil ainda está recebendo imigrantes e refugiados, enquanto, na Europa e nos Estados Unidos, as políticas são cada vez mais draconianas. Mas, ao mesmo tempo, há indícios que aqui também há o perigo da política endurecer (a tentativa de mudar o estatuto do refúgio mostra essa tendência), como já endureceu na Argentina de Macri. Ainda bem que, no Brasil, contamos com uma sociedade civil – e inclusive com uma Igreja atuante – em prol dos direitos humanos e dos direitos migrantes", avalia.