“O povo que esquece sua história está condenado a repeti-la”. A frase, escrita há mais de um século pelo filósofo espanhol George Santayana, veio à memória de muitos brasileiros em setembro deste ano, quando foi repetida à exaustão nas redes sociais. E não por menos: no início daquele mês, o País viu parte irrecuperável de sua história virar cinzas devido ao incêndio que devastou o Museu Nacional, no Rio de Janeiro , numa das piores tragédias de 2018.
Àquela altura do ano, o fogo, que consumiu páginas do passado no até então maior museu de história natural da América Latina, já havia comprometido também o futuro de dezenas de famílias que viviam em um edifício do Largo do Paissandu, na região central de São Paulo. Em comum entre as duas ocorrências – e entre outras tragédias de 2018 –, está a inoperância do poder público para se antecipar às catástrofes.
Antiga residência da família real portuguesa, o palácio situado na Quinta da Boa Vista abrigava, já há 200 anos, mais de 20 milhões de itens – tais como o crânio de Luzia, fóssil humano mais antigo das Américas, e o Meteorito de Bendegó, o maior já encontrado no Brasil, com mais de cinco toneladas. Até a noite de 2 de setembro.
Naquele domingo, apenas quatro vigilantes estavam no Museu Nacional quando o fogo teve início e se alastrou rapidamente devido à estrutura de madeira do prédio e à alta quantidade de material inflamável no local.
Os bombeiros foram acionados para combater o incêndio, mas se depararam com falta de água no local, o que atrasou o início das ações em meia hora. Até mesmo água do lago da Quinta da Boa Vista foi usada no afã de tentar evitar a perda do museu. Mas o estrago estava feito: as chamas seguiram ativas ao longo de mais de sete horas, vindo a se apagar apenas quando já não havia muito mais a ser consumido. As causas do incêndio, investigadas pela Polícia Federal, até hoje não foram informadas.
A administração do museu é de responsabilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cujo orçamento depende do Ministério da Educação (MEC). Na manhã seguinte à tragédia, o diretor do museu, Alexander Kellner, não conseguia esconder sua indignação e atribuiu o desastre à “falta de bom senso” do governo .
“[O incêndio] é sim responsabilidade do governo federal. Não adianta dizer que não é. Porque é o governo federal que tem os recursos necessários. Nós não estamos pedindo, estamos implorando. Se nós tivéssemos esse terreno, parte dessa tragédia teria sido evitada. Bastava o bom senso", reclamou.
No caso do museu e tantos outros, o simples cumprimento das normas de segurança e de manutenção predial já existentes seria suficiente para reduzir em muito os riscos de tragédias, segundo explica o professor de Engenharia Civil Alexandre Landesmann, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da UFRJ.
"No Brasil, a gente tem leis para tudo, mas elas não são observadas em vários níveis,
principalmente no poder público que, dado o seu gigantismo, é mais lento para atender a isso", comenta.
Em casos como o do Museu Nacional, Landesmann explica que é necessário sempre haver a manutenção do sistema elétrico, do aparato de detecção de fumaça, alarmes e portas corta-fogo, além de inspeções para assegurar que o sistema hidráulico tem pressão suficiente para combater incêndios. Mas a própria cultura do Brasil não preza por esse tipo de ação.
"São tantos pontos a serem observados que eles acabam não aparecendo. A gente está muito preocupado em produzir coisas novas e não manter aquilo que já existe. Não só no poder público, mas até mesmo no ambiente privado. Ninguém se preocupa em fazer a revisão do carro até ter algum problema, por exemplo", comenta o professor.
O governo, claro, reagiu após a catástrofe de 2 de setembro. Foi anunciado repasse de R$ 10 milhões para recuperar a instituição e surgiu a promessa de busca por ajuda internacional. Que veio: o governo francês ofereceu ajuda imediata. A Unesco colabora com os trabalhos de restauração. A Alemanha doou recentemente 190 mil euros (cerca de R$ 790 mil, na cotação atual). Instituições dos Estados Unidos ofereceram intercâmbio a pesquisadores brasileiros prejudicados pela tragédia.
A recuperação do museu, no entanto, ainda se mostra um sonho distante. Embora o citado Meteorito de Bendegó tenha resistido às chamas (bem como seu ‘primo’ Meteorito Angra dos Reis), apenas 1.500 peças foram reencontradas após as chamas.
Como alento, o Google lançou neste mês serviço que permite visitação a um acervo virtual com obras e artefatos pertencentes ao museu antes do incêndio. Tudo em alta resolução. Nada concreto. Nada real.
Falta de ações preventivas resultaram em mais tragédias de 2018
A retrospectiva de tragédias de 2018 não faria escala no Largo do Paissandu , no centro da capital paulista, caso o poder público tivesse tomado providências três anos atrás, quando inspeção técnica do Corpo de Bombeiros apontou risco de incêndios no Edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado de maneira irregular.
Nada foi feito e, na madrugada do dia 1º de maio, um curto-circuito no quinto andar provocou um grande incêndio que, poucos momentos depois, causou o desabamento de toda a estrutura de 24 andares.
Mais de 1.700 bombeiros se revezaram dia e noite ao longo de duas semanas ininterruptas de trabalho em busca de vítimas em meio aos escombros. Foram quase 300 horas de trabalho que resultaram na remoção de mais de três toneladas de escombros do edifício. Ainda assim, as ações foram encerradas já sem esperança de localizar os restos mortais de quatro pessoas dadas como desaparecidas na tragédia.
Foram encontradas outras quatro vítimas durante as ações de buscas: os gêmeos Wendel e Werner Almeida, de 9 anos de idade; o confeiteiro Francisco Lemos Dantas, de 56 anos, e Ricardo Oliveira Galvão Pinheiro, de 39 anos. Ricardo, segundo relataram testemunhas, havia escapado do incêndio, mas retornou ao interior do prédio para tentar ajudar nos resgates. Ele chegou a colocar o cinto de salvamento dos bombeiros, mas não teve tempo para deixar o local quando o prédio ruiu.
A Prefeitura de São Paulo anunciou, nos dias seguintes ao incêndio, que pagaria auxílio-moradia no valor de R$ 400 para 116 famílias durante o período de um ano. A Justiça, no entanto, decidiu após ação da Defensoria Pública que o benefício deveria ser pago por tempo indeterminado.
O desastre do Edifício Wilton Paes foi a primeira crise vivenciada pelo então recém-alçado ao posto de prefeito, Bruno Covas (PSDB). O tucano voltaria a atravessar situação semelhante seis meses mais tarde, quando a cidade de São Paulo viu ceder um viaduto de uma de suas principais vias, a Marginal Pinheiros.
O incidente aconteceu na madrugada do feriado de 15 de novembro , a poucos metros da Ponte do Jaguaré, na rota de acesso à rodovia Castello Branco. Devido ao horário, poucos carros trafegavam pela região no momento em que o viaduto tombou cerca de dois metros. Ainda assim, cinco carros ficaram danificados, mas ninguém se feriu.
A queda do viaduto provocou congestionamento nas semanas que se seguiram e chegou a interferir no transporte de passageiros dos trens da linha 9-Esmeralda da CPTM, que passa por baixo da ponte acidentada.
A Secretaria Municipal de Transportes de São Paulo assegurou que o viaduto não apresentava problemas estruturais, mas documentos revelaram que a estrutura não passou por manutenção ao longo de mais de duas décadas devido a um impasse judicial entre a Prefeitura e o Departamento de Estradas de Rodagem (DER).
O prefeito Bruno Covas anunciou neste mês que as obras para recuperar o viaduto só devem ser concluídas em maio de 2019 e custarão R$ 30 milhões aos cofres municipais. Enquanto isso, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) investiga o porquê de a Prefeitura ter empregado em 2018 apenas R$ 2,4 milhões dos R$ 44,7 milhões que estavam previstos no orçamento para a conservação e manutenção de pontes e viadutos da capital.
Em São Paulo, há mais de 180 pontes e viadutos que podem apresentar problemas estruturais, segundo laudo apresentado pelo MP-SP. Mas a situação não é exclusividade dos paulistanos.
No início de fevereiro, o trecho de um viaduto do Eixão Sul de Brasília simplesmente se desprendeu da via e esmagou oito carros e um restaurante situado na Galeria dos Estados, a menos de um quilômetro da Rodoviária do Plano Piloto.
O governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg (PSB), admitiu que o viaduto não havia passado por vistorias recentes, muito embora sua situação precária não era de um todo desconhecida. Relatório elaborado em 2012 por auditoria do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) já apontava a necessidade de "reparos/manutenção urgente" naquela via.
No estudo, auditores constataram que "muitos dos bens inspecionados não se encontram em adequado estado de conservação" e recomendaram reformas em caráter de urgência num total de nove obras de Brasília. Entre elas, constava o viaduto do Eixão Sul.
Os incidentes com viadutos registrados neste ano revelam também as consequências da falta de manutenção preventiva, muito embora existam recomendações para que ao menos inspeções sejam realizadas anualmente, segundo explica o engenheiro Nelso Nór Filho, do Instituto Brasileiro de Perícias em Engenharia de São Paulo (Ibape-SP). "Existe uma norma brasileira específica sobre a inspeção de pontes, viadutos e passarelas de concreto. Essa vistoria tem que ser feita anualmente para que seja feito um diagnóstico para a manutenção correta", explica.
Acidentes com avião povoaram noticiário em 2018
Sonhada pelo brasileiro Alberto Santos Dumont no início do século 20, a atividade de voar também encontrou turbulências ao longo de 2018 – no Brasil e no Mundo.
Em terras tupiniquins, foram recorrentes os acidentes com aeronaves de pequeno porte. Dois acidentes fatais se deram no Aeroporto Campo de Marte, na zona norte de São Paulo, somente neste segundo semestre.
O primeiro deles ocorreu em julho , quando o piloto de um avião bimotor tentou forçar o pouso após arremeter três vezes e acabar caindo em plena pista do aeroporto. A queda foi sucedida por explosão, que acabou matando o piloto, Antonio Traversi. Outras seis pessoas estavam a bordo, mas escaparam com vida.
O segundo acidente aconteceu há menos de um mês, no fim de novembro. Na tarde de uma sexta-feira, um avião modelo Cessna 210N atingiu três casas momentos após ter decolado do Aeroporto Campo de Marte. A colisão provocou explosão, que incendiou até mesmo veículos estacionados nas proximidades, e os dois tripulantes da aeronave morreram (Guilherme Murback, de 26 anos, e Leonardo Kasuiro Imamura, de 43). Outras 11 pessoas ficaram feridas.
Situação parecida havia sido registrada em março deste ano num bairro residencial do município de Joinville, no norte de Santa Catarina. Três pessoas morreram devido à queda do helicóptero de uma empresa que prestava serviços ao parque temático Beto Carrero World.
Também ganharam o noticiário ao longo do ano acidentes semelhantes ocorridos em Minas Gerais e no Mato Grosso – estado onde vítimas de dois acidentes distintos tiveram a sorte de serem encontradas com vida em meio à mata mesmo quatro dias após a queda de seus aviões.
Apesar da frequência com que os acidentes aéreos foram noticiados em 2018, o número de ocorrências está "dentro da média natural em razão do tamanho da frota" e "não há situação de alerta", segundo o comandante Décio Correa, especialista em aviação civil e ex-integrante do conselho consultivo da Anac. De acordo com o Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), a média nos últimos dez anos é de 64 acidentes aéreos no Brasil.
"Não existe aumento significativo de acidentes em 2018. O Brasil tem frota de 20 mil aviões de pequeno porte, enquanto há 400 mil aviões de linhas aéreas em operação. Se cruzadas as horas de voos, no entanto, os números são parelhos", explica.
De acordo com o comandante, houve mais acidentes com aeronaves menores ao longo do ano devido a três fatores: o padrão de treinamento das tripulações desses aviões, o padrão de manutenção das aeronaves e a idade da frota. Mais uma vez, surge a cobrança por ações capazes de prevenir fatalidades.
"Há um rigor muito maior na aviação de linha aérea regular ou aviação executiva. Um piloto de avião de pequeno porte não sofre uma regularidade de treinamentos, com aplicação de cursos, como as tripulações de linhas aéreas. Está claro que a chance de esse piloto ter um problema mecânico é muito maior", diz Correa. "Sem dúvida nenhuma, precisamos ser mais rigorosos com o padrão de manutenção e também sermos mais criteriosos com a infraestrutura e equipamentos para contribuir com o aumento da segurança e a redução de acidentes. Ainda há muito o que se fazer."
Se no Brasil os acidentes aéreos de 2018 tiveram em comum pequenas aeronaves, mundo afora a situação foi diferente. Aviões com dezenas de pessoas a bordo se acidentaram, todos no primeiro semestre, na Rússia , no Nepal e em Cuba .
Diante de tantos acontecimentos desastrosos ao longo do ano, cabe ao poder público e à sociedade como um todo tomar lições com as tragédias de 2018 para não repeti-las no futuro – conforme ensinado pelo filósofo Santayana e reforçado pelo professor da UFRJ Alexandre Landesmann. "Sou otimista em achar que as coisas possam melhorar. Essa atitude é comum e se mostra repetida ao longo da história. Se a gente for ver o da Boate Kiss [incêndio ocorrido em 2013], houve desdobramentos imediatos em várias cidades para haver redução de riscos. Mas, uma vez saciado esse clamor popular por uma resposta, a gente fica com a sensação de que a preocupção não permanece. A gente sempre vai tendo que aprender com os erros, mas sem a capacidade de preveni-los."