A descoberta de que há 2,9 milhões de livros didáticos acumulados e alimentando traças em um galpão alugado pelos Correios em Cajamar, na região metropolitana de São Paulo, foi chocante. Mais terrível ainda foi a primeira reação do Ministério da Educação (MEC), que ameaçou descartá-los sumariamente num processo que classificou com a rebuscada frase (quem sabe a merecer um latim) “ desfazimento de livros inservíveis ”.
Destruir livros é algo típico de regimes autocratas e períodos de trevas. Os nazistas , por exemplo, começaram a queimá-los em 1933. Obras que não estavam de acordo com suas ideias obscurantistas iam para o fogo. A ditadura militar brasileira também fez isso: em 1977, queimou três toneladas de produtos culturais em um forno instalado no Aeroporto Internacional de Brasília.
Agora, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do Ministério, divulgou uma nota informando que, antes do descarte das obras de Cajamar, haverá uma análise para descobrir o que deve ou não ser aproveitado. Seja como for, o caso demonstra que as intenções do atual governo em relação à educação e ao conhecimento são incendiárias. O presidente Jair Bolsonaro age com displicência e dá sinais claros de que não gosta de livros, sejam didáticos ou qualquer obra que contenha “letras demais” — letrinhas, para ele, talvez só na sopa em forma de macarrão.
Vontade doutrinadora
Ele e seu ministro da Educação, Abraham Weintraub , deram diversas declarações contrárias aos livros selecionados atualmente pelo MEC e à prática da leitura, vistos pelo governo, de um modo geral, como um caminho para a educação esquerdista e ideologizante.
Na sexta-feira 3, Bolsonaro, dirigindo-se a apoiadores postados em frente ao Palácio da Alvorada, demonstrou pouco apreço aos materiais distribuídos aos estudantes e disse que são “um lixo”. “Os livros hoje em dia, como regra, são um montão, um amontoado de muita coisa escrita , tem que suavizar aquilo”, declarou. “Estudei na cartilha ‘Caminho Suave’, você nunca esquece. Não é esse lixo que, como regra, está aí. Essa ideologia de Paulo Freire”.
Dias depois, Weintraub afirmou que deu uma “boa limpada” no material didático distribuído pelo governo e excluiu “muita porcaria”. “Mas ainda vai sair muita coisa que a gente não gosta”, completou. Para ele, que faz generalizações indevidas e comete erros crassos de português — dias atrás escreveu “imprecionante” no Twitter em vez de impressionante —, a função dos livros é ensinar e não doutrinar. Gorda mentira: é ele quem ideologiza o ensino. O que deveria fazer é ler mais para aprender português.
Diante da profusão de absurdos, o futuro do ensino no País preocupa, principalmente quando se considera que o pouco apreço à leitura é a base da “política educacional” que o atual governo quer implantar. Em um Brasil que já lê mal e pouco, muito menos do que seria aceitável, o elogio da ignorância e a preocupação insensata com a doutrinação pode ter efeitos deletérios.
“O que é dito por autoridades tem conseqüências e acaba impactando na formação de uma geração”, afirma a professora Cláudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Política Educacionais da FGV-RJ. “Ainda que haja algum livro didático ruim, temos um problema mais sério que é desenvolver nos nossos jovens a capacidade de análise num nível mais sofisticado porque o ser-humano está sendo substituído por robôs no mercado de trabalho”.
É a capacidade analítica que garantirá o emprego dos jovens brasileiros no futuro. Para disputar um lugar melhor no mercado, precisarão ter a habilidade de compreender e traduzir realidades complexas e desenvolver o pensamento abstrato. Sem leitura, isso é impossível. A leitura pressupõe a liberdade; a liberdade pressupõe a crítica; e sem crítica não há aprendizado.
Manobra diversionista
A política brasileira de distribuição de livros escolares, chamada de Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), existe há 30 anos e é uma das mais efetivas e abrangentes do mundo. Ela custa R$ 2 bilhões por ano aos cofres públicos, garante a distribuição de 165 milhões de obras e permite o acesso ao material escolar por crianças e adolescentes nos rincões mais profundos. Os livros são distribuídos para 48 milhões de alunos em cerca de 150 mil escolas de todo o País.
“As declarações do presidente revelam um desconhecimento muito grande do conteúdo e dos propósitos dos livros didáticos e podem colocar em xeque o próprio PNLD”, alerta a pedagoga Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). “Todas as obras são analisadas tecnicamente e com seriedade por uma comissão de especialistas e produzidas a partir de um edital de licitação. O programa está consolidado, é bom e contribui para a aprendizagem dos alunos”. Anna Helena diz que não consegue entender quando Bolsonaro afirma que há muito conteúdo, muita coisa escrita dentro de um livro. Para ela, trata-se de uma manobra diversionista para tirar a atenção dos problemas realmente importantes da educação.
Os livros guardados no armazém de Cajamar, todos novos e ainda embalados, fazem parte da reserva técnica do PNLD. Há sempre uma sobra nas compras anuais que acaba sendo estocada. No caso, trata-se de material acumulado durante 14 anos, entre 2005 e 2019. A reserva técnica é importante porque a realidade do ensino é bastante dinâmica, os jovens mudam de escola e de cidade e é preciso garantir que todos os alunos recebam o material didático. Ainda que o acúmulo revele uma eventual falha de gestão, ela não pode invalidar os inúmeros acertos do programa.
Os 2,9 milhões de livros estocados que Bolsonaro quer jogar no lixo, de todas as disciplinas e destinados a todas as séries, representam um custo de R$ 20,3 milhões, considerando o preço unitário de R$ 7. “Não faz sentido destruir livros, ainda que os mais antigos possam estar ultrapassados”, diz Anna Helena. “É preciso ver o que pode ser aproveitado e enviado para as escolas e é importante que haja transparência nesses critérios”. Os livros podem ser destinados para bibliotecas ou escolas públicas ou privadas sem fins lucrativos. Há certamente um bom uso para esse material, mesmo que parte dele esteja desatualizada.
Temas Periféricos
O problema é que o governo atual mostra má vontade com os livros em geral e, em vez de propor políticas públicas ou compreender e estimular as que já existem e funcionam, prefere entrar em discussões ideológicas que nada contribuem para o desenvolvimento da educação. Como é típico de governantes autocráticos, Bolsonaro denuncia a doutrinação de governos anteriores pensando em impor sua própria doutrina. “Há um risco real de retrocesso na educação no Brasil”, afirma Cláudia Costin. “O governo prefere entrar em discussões ideológicas em vez de fomentar políticas públicas bem-sucedidas”.
As sucessivas declarações do ministro Weintraub têm gravitado em torno de temas periféricos
e irrelevantes que não traduzem as reais necessidades e os desafios da educação no País. Há, por exemplo, um Plano Nacional da Educação (PNE) que foi construído de uma maneira participativa e aprovado pela Câmara dos Deputados quando o próprio Bolsonaro era deputado. O PNE tem 20 metas, como elevar a taxa de alfabetização da população e triplicar as matrículas da educação profissional técnica de ensino médio, que deixam claro quais são as prioridades da área. Essas metas, como lembra Anna Helena, não foram cumpridas, além de terem sido ignoradas pelo governo durante todo o ano passado. No lugar disso lançam-se temas como as escolas cívico-militares ou a escola sem partido, cujo objetivo é criar uma cortina de fumaça sobre as questões importantes.
A Política Nacional de Alfabetização , outro desafio enorme no Brasil, é mais uma iniciativa que vem sendo distorcida. O governo denuncia um problema de método sempre com o argumento canhestro da doutrinação, mas não discute o assunto profundamente e nem demonstra ter qualquer estratégia para implantar um novo modelo. Em vez disso, se dedica a falar mal do educador Paulo Freire , um brasileiro genial e ilustre, e a elogiar a cartilha “Caminho Suave”, que serviu para alfabetizar 48 milhões de brasileiros entre 1950 e 1990, mas hoje está defasada. Tudo o que o governo diz é vago e rancoroso.
“Não se pode reduzir a alfabetização ao uso de uma cartilha, que foi utilizada em um contexto muito específico”, afirma Anna Helena. “Quando a gente fala em política de alfabetização, estamos falando de planejamento, formação de professores, definição do número de alunos por sala de aula, livros didáticos e muitas outras coisas”. Observa-se um desconhecimento de qual é a verdadeira atribuição e o papel do MEC e de suas reais necessidades. Houve avanços no acesso à educação, na alfabetização, na avaliação, no desempenho dos alunos, na autonomia dos professores e na gestão democrática, mas ainda são tímidos. E, enquanto isso, o governo pensa mais em destruir do que em construir.
A prova cabal de que Bolsonaro e Weintraub estão se lixando para melhorar a educação pública é a queda do orçamento do MEC para 2020. O corte anunciado foi de 16,2% em relação ao ano passado — de R$ 121,9 bilhões para R$ 101,2 bilhões. Em um sistema de ensino que sofre com falta de infraestrutura, falta de professores e salários baixos, alunos desconectados da internet e que precisa de dinheiro para avançar é uma péssima notícia. A redução orçamentária afeta a educação básica. Como destaca Cláudia, países desenvolvidos que viveram crises econômicas importantes, mesmo em situação difícil, jamais fizeram isso.
“Vejo com muita preocupação essa redução de orçamento porque mostra que a educação não é prioridade”, diz ela. Sob as rédeas de Bolsonaro caminhamos para uma distopia muito bem representada no livro Fahrenheit 451, do americano Ray Bradbury, que mostra uma sociedade em que os livros foram proscritos e tê-los em casa era crime. Corremos o sério risco de o País se tornar uma enorme fornalha.