Série Especial sobre a Evolução do Sistema Democratico
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Série Especial sobre a Evolução do Sistema Democratico


No último artigo da nossa série,  Leis boas, Leis Ruins, concluímos que da mesma forma que remédios são testados para segurança e eficácia, assim devem ser as leis que regulamentam a sociedade, pois seus equívocos têm impactos sociais difusos e duráveis. Nesse contexto, é inclusive plausível afirmar que o Estado seja a principal causa de conflitos na sociedade.

Considere os seguintes exemplos: o governo federal define um salário mínimo que, ao invés de proteger trabalhadores, leva ao fechamento de fábricas e à perda de empregos em certas regiões, além de provocar a migração não planejada para áreas mais ricas instaurando caos. Radares substituem ‘quebra-molas’, não pela segurança, mas porque aumentam a arrecadação das prefeituras. Leis obrigam o cidadão a votar, sem comprovação clara de que isso aumenta a participação consciente ou melhora a democracia. Enquanto isso, escolas e hospitais públicos permanecem precários, apesar de haver soluções privadas, como vouchers  (vale-educação ou vale-saúde), que poderiam fornecer alternativas melhores aos cidadãos através da iniciativa privada.

Esses são apenas alguns dos incontáveis exemplos de como o governo pode interferir e prejudicar nossas vidas, muitas vezes sem que haja um mecanismo eficaz de proteção ao cidadão. Como um sistema alternativo poderia funcionar? Proponho a criação de um ‘Juiz Calibrador’, que poderia ser acionado por um grupo de cidadãos, por associações ou pelo Ministério Público para avaliar e ajustar leis e políticas que estejam causando mais danos do que benefícios.

Imagine um cenário em que um juiz recebe a seguinte carta: “Sr., após o aumento do salário mínimo, a taxa de desemprego da minha cidade piorou drasticamente. As empresas não conseguem mais subsidiar novas oportunidades e estão se mudando para locais com maior infraestrutura. Jovens enfrentam dificuldades ainda maiores em busca de uma vaga. As pessoas com melhor educação partiram para regiões mais prósperas, causando uma recessão devastadora para os comerciantes locais. Precisamos de ajuda.” Esse é um exemplo, que pode ser comprovado cientificamente, de que ajustes pontuais são imprescindíveis para o bem comum, ainda que não agrade a todos. Neste caso, o papel do juiz seria fundamental. Ele avaliaria as evidências apresentadas, consideraria os impactos sociais e econômicos, e tomaria uma decisão embasada, que poderia ser: forçar o executivo e/ou legislativo a se posicionar ou calibrar a lei na região específica para protegê-la. Nesse caso, definiria, com base nas evidências presentes a política local que maximiza o bem-estar e minimiza o desemprego, até uma modificação permanente do executivo e legislativo.

O juiz não precisa ser um advogado. Pode ser um economista, estatístico, matemático, cientista de dados, engenheiro, ou outro profissional especializado em interpretação de evidências numéricas. O objetivo é verificar o fundamento dos estudos apresentados, realizar questionamentos críticos, verificar as fontes utilizadas, buscar explicações alternativas, ouvir opiniões contrárias, e, finalmente, emitir seu parecer e decisão. Advogados atuariam como consultores para garantir que as decisões estejam alinhadas com os novos princípios legais (descritos nos artigos anteriores).

Mas não seria essa a responsabilidade do legislativo ou do executivo? Em teoria, sim.  No entanto, o aparato legislativo federal brasileiro, com cerca de 20 mil pessoas, realiza centenas de modificações legislativas anuais, em um universo de milhares de normas vigentes.

Em contraste, o aparato judiciário, incluindo as esferas federal, estadual e municipal, conta com aproximadamente centenas de milhares de pessoas. Embora nem todos esses profissionais fossem 'Juízes calibradores', é evidente que esperar que o legislativo consiga regular leis para a realidade específica de cada bairro, cidade ou estado é uma tarefa monumental e, em muitos casos, inviável.

Esse mesmo exercício precisa ser estendido ao legislativo estadual e municipal. No entanto, a nova definição de leis proposta em nosso artigo anterior não resolve o imenso legado de normas antigas que não atendem a padrões mínimos de qualidade.

Esperar que novas leis baseadas em evidências substituam todo o histórico legislativo vigente no Brasil é aceitar que o prazo para uma melhoria significativa no país é indefinido e potencialmente inatingível. Precisamos considerar estratégias alternativas para revisar e atualizar essas leis existentes de forma mais eficiente.

Não seria essa a função do Executivo Estadual e Municipal?

Essa é uma questão válida. Em teoria, o Executivo estadual e municipal deveria ter o papel de ajustar e calibrar políticas e leis para atender melhor às necessidades locais. No entanto, é importante considerar que os Executivos frequentemente têm outras prioridades, ou podem não possuir a expertise necessária para realizar as análises detalhadas deixando o cidadão comum à mercê de leis inadequadas.

A Importância da Neutralidade e Imparcialidade

O 'Juiz Calibrador' traria uma vantagem crucial: a neutralidade e imparcialidade, características difíceis de garantir em um Executivo político. Diferentemente de um político que pode ser influenciado por interesses próprios, o 'Juiz Calibrador' tomaria  decisões baseadas em evidências e sem pressão política imediata. Ele poderia questionar o Executivo, solicitando que se posicione ou propondo mudanças temporárias, até que o Legislativo local ou o próprio Executivo implementem correções permanentes.

Flexibilidade e Eficiência na Resolução de Conflitos

Outra vantagem de um 'Juiz Calibrador' seria a capacidade de fazer ajustes contínuos e simples, sem a necessidade de passar por longos processos legislativos ou executivos. Esses ajustes poderiam ser implementados de forma mais ágil, sem sobrecarregar os recursos públicos ou desviar o foco de outros assuntos cruciais, exemplo, ajustar um valor nominal na lei para seu valor real. Além disso, o juiz poderia dar publicidade ao problema, aumentando a conscientização pública e estimulando o debate, o que é essencial em uma sociedade democrática.

Como em tudo na vida, o diabo está nos detalhes, e este é um tema que vai além do escopo de um mero artigo de mil palavras. A implementação desse sistema exigiria um cuidado meticuloso para evitar que ele se torne apenas mais uma engrenagem burocrática ineficaz. O “juiz calibrador” não pode ser apenas uma solução para questões pontuais, mas um agente de mudança sistêmica, que atua na causa raiz, corrigindo falhas estruturais que afetam milhares de pessoas. É crucial reconhecer o conflito de interesses inerente entre o estado e o cidadão, onde, em muitas ocasiões, os interesses do governo podem superar tanto o desejo quanto as necessidades reais da população.

Em resumo, quando há uma lei que obriga o hospital público a atender um paciente com câncer, mas este não é recebido, apenas alguns cidadãos entram com pedido judicial. E quando conseguem a liminar são repetidamente deixados à própria sorte para falecer sem receber o tratamento necessário. Então, enquanto o Estado cria dificuldades para depois vender facilidades, um “juiz calibrador” atuaria para garantir que as leis realmente protejam e beneficiem a sociedade, intervindo para que os cidadãos não sejam injustiçados ou negligenciados no pior momento de suas vidas.

Para acompanhar a série especial sobre a evolução do sistema democrático, leia os textos:  À Beira do Colapso; A Nova Arquitetura do Poder; Injustiça para todos  e  Leis boas, Leis Ruins.

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