Enquanto parte dos passageiros do Splendida, navio da MSC Cruzeiros que seguia pelo litoral brasileiro, com saída de Santos e promessa de Réveillon em Copacabana, no Rio , se divertia e se aglomerava na piscina, bares e cassino a bordo , um cenário de caos e horror se desenrolava silenciosamente, dias a fio, em outros setores da embarcação, onde estavam passageiros isolados pelo surto de Covid-19 que ali ocorria.
O relato, com direito a homens com trajes de roupa "de astronauta" circulando apressadamente pelos corredores, passageiros sendo jogados em cabines não higienizadas e recém-liberadas por outros isolados, alto-falantes e telefone desligados, e funcionários que não divulgavam protocolos claros nem informações, é da secretária aposentada Viviane Cardoso, de 59 anos, cujas imagens registradas do descaso da MSC Turismo com os serviços prestados a passageiros circularam nas redes sociais nos últimos dias.
Já de volta à casa de sua família, em Santos, Viviane conta que conseguiu passar a virada do ano fora da cabine aos 45 minutos do segundo tempo: mesmo com resultados de testes negativos para o coronavírus, ela e filha somente conseguiram sair do navio, e "por conta própria", no início da noite do dia 31 de dezembro:
"Por muito pouco não passei a virada ali, naquela cabine pequena, com minha filha. Saímos às 18h45, no último desembarque de passageiros antes do navio voltar a sair. Às 19h15, ouvimos o pi-pi do navio, indo embora. E saímos por conta própria, porque depois de muitas tentativas de ir embora e desinformação, simplesmente pegamos um elevador, descemos e saímos. Sem 'homens da Nasa' nos acompanhando, sem checkout, sem apresentação de documentos - conta a aposentada, que lembra da cara de susto dos tripulantes quando ela dizia, já perto do elevador, que estavam "isoladas", chegaram ali sozinhas e queriam sair. - Eles diziam 'minha senhora, ninguém mais vai voltar para buscar vocês, aquele lá é o último ônibus levando os passageiros confinados para a saída'. E nos entregaram um papel sem vergonha, apenas, para ir embora, preencher e mandar por email de volta, para a MSC", conta Viviane.
Neste domingo, a Anvisa informou que irá apurar se houve descumprimento de protocolos sanitários no caso da MSC Splendida e de outros cruzeiros nestes últimos dias. A agência ainda lembrou que as atividades dos cruzeiros podem ser suspensos, diante do cenário e disse que intensificou as investigações epidemiológicas e sanitárias para controlar a transmissão de Covid-19 a partir das embarcações.
'Ficamos abandonados'
Viviane Caroso viajou com a filha Vitória, de 16 anos, em uma cabine. Em outra, estavam o filho, de 30, e a nora, de 29. Gastaram, pelo pacote da viagem de 7 dias em cruzeiro, que incluía acomodações e alimentação, cerca de 35 mil reais. Entraram no navio no dia 26 e, já a partir da manhã do dia 28, ficaram em isolamento, pois a nora havia "testado positivo para o vírus" (inicialmente tratado como coronavírus mas que depois a família veio a descobrir, com testes mais precisos, que era de gripe). Pelo contato, toda a família ficou isolada, mantendo a comunicação apenas por telefone (pela "contaminação", o filho e a nora foram para o outro lado do navio).
"Ficamos abandonados. Soube que voltamos pra Santos pela geolocalização do celular, não porque nos avisaram da mudança de rota antes. E ninguém me dava nenhuma informação sobre meu filho, o que eu sabia era por telefone, dele dentro da cabine, também sem informações de fora. Nenhum médico ia à cabine deles, e teoricamente minha nora estava contaminada. Em determinado momento, os alto-falantes foram desligados na cabine e fomos mal atendidos pelos tripulantes no telefone, com grosseria. Para ter notícias, eu tinha que ir para o corredor e ouvir o alto-falante. Uma tripulante disse que nós não precisávamos nos preocupar com as mensagens, que "não eram pra gente". Só sabíamos das notícias pela TV, isso quando ligavam, e com informações distorcidas, pois tentavam esconder a realidade. Devia ter, pelos nossos cálculos, cerca de 150 pessoas isoladas naquele navio", lembra.
Surto teria começado pela tripulação
A suspeita da passageira, a partir de relatos de dentro do navio, é de que o surto teria partido da própria tripulação. Segundo ela, uma tripulante que pediu para não ser identificada teria lhe confidenciado que o navio veio de outro cruzeiro da semana anterior e iniciou a viagem em Santos já com vários tripulantes contaminados a bordo.
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"Ela me disse 'Viemos de Funchal já com vários contaminados'. Tomaram tanta precaução com os passageiros, que tiveram de apresentar testes negativos para Covid, e nenhum com os tripulantes... Eles só começaram a ser testados a partir do dia 28, quando apareceram os casos entre passageiros. Aí o número de casos confirmados saltou, mas as informações não circulavam, eram abafadas. Lá em cima, outros passageiros aglomeravam e se divertiam sem saber de nada. A rotatividade foi muito grande. Quem saiu e agora está dizendo que tudo estava maravilhoso lá não sabia do surto que estava acontecendo. As reclamações vêm dos confinados", afirma Viviane.
A aposentada também detalha o desleixo com as refeições oferecidas — pouca e sem regularidade, falta de higienização das cabines, onde nem roupa de cama e nem toalhas eram trocadas e o lixo se acumulava.
"Se estou confinada, quero pelo menos ter o conforto que eu teria se estivesse circulando pelo navio. Mas nem água traziam. Se a gente reclamasse, aí eram cinco horas sem receber nada", lembra.
Considerando a higienização protocolar necessária para ambientes com suspeita de contaminação, o problema era ainda mais grave:
"Três rapazes estavam isolados em uma cabine ao lado e saíram um dia depois de entrarem ali, pois testaram positivo no quarto e foram para o outro setor do navio. Aí entrou uma camareira e limpou mal e porcamente a varanda, arrumou a cama e tirou a toalha. Mais nada. Não trocaram nem o lençol e já colocaram outros passageiros imediatamente na cabine", diz.
Viviane Cardoso diz que sua irmã, que é advogada, prepara agora um processo para levar adiante na justiça, contra a MSC Cruzeiros. Desde que saiu do navio, no dia 31, a empresa não fez mais contato.
Em resposta ao GLOBO, a MSC Cruzeiros não informou o número exato de passageiros e tripulantes com casos confirmados de Covid-19 até o momento, mas se pronunciou sobre a situação do Splendida: "Como parte da nossa rotina de monitoramento de saúde, que inclui testagens frequentes e diárias de 10% de todos os hóspedes e tripulantes do navio, ação que integra nosso protocolo de saúde e segurança, líder do setor, identificamos um número limitado de casos de COVID-19 entre os hóspedes e tripulantes do MSC Splendida. Conforme definido pelo protocolo, isolamos imediatamente estas pessoas e seus contatos próximos em uma seção dedicada e separada do navio, longe de todos os outros passageiros e em cabines com varanda, seguindo as medidas previstas para este tipo de situação."
A empresa informa, ainda, que realizou uma escala técnica em Santos no dia 30 de dezembro, providenciando o desembarque "em segurança" de todos os casos confirmados e seus contatos próximos, com transporte dedicado e exclusivo. A empresa informa, ainda, que ofereceu aos hóspedes "as opções de uma carta de crédito no valor do cruzeiro original, que pode ser resgatada em qualquer cruzeiro futuro até o dia 31 de dezembro de 2022, ou o reembolso total dos valores pagos pelo cruzeiro, além do reembolso dos pacotes pré-pagos (bebidas, excursões, etc.), proporcionalmente aos dias não utilizados".