Levante antirracista: atos no Brasil e EUA dizem "vidas negras importam"

“Somos uma geração que está surgindo no meio de uma pandemia para lutar pela sua sobrevivência enquanto juventude negra”, dizem manifestantes

Foto: Reprodução Instagram
Wesley Teixeira em fala durante o primeiro ato antirracista no Rio de Janeiro


"A gente convocou este ato porque não dava para ficar em casa enquanto eles (tentam) nos matar na nossa casa", gritava Wesley Teixeira a plenos pulmões durante a fala de encerramento e dispersão do primeiro ato antirracista do movimento " vidas negras importam ", que ocorreu no domingo passado (31), em frente ao Palácio das Laranjeiras, sede do governo estadual, no Rio de Janeiro.

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O Wesley Teixeira é membro do Movimenta Caxias, do cursinho popular Mais Nós, colunista do Perifaconnection e militante do Movimento Negro Unificado, que integra a Coalizão Negra por Direitos . Ele é um dos muitos militantes que integram o movimento de favelas e periferias do Rio de Janeiro, composto por diversas entidades com atuação constante nesses terriitórios e ligadas a pauta racial, que convocaram a manifestação no último domingo.


Durante a explosão por todo o território norte-americano de atos contra o racismo policial exercido no assassinato de George Floyd  - um homem negro morto por um policial branco -, o Rio de Janeiro também lidava com mortes em decorrência de operações nas favelas.

A violência da polícia nos territórios periféricos, sobretudo contra corpos negros, maioria das vítimas das ações policiais, une as diversas entidades da militância antirracista e da valorização das vidas nas favelas na mobilização da manifestação.

“Não é uma tentativa de fazer no Brasil o que está acontecendo lá, mas é uma tentativa de denunciar que o racismo no Brasil é tão igual ou pior que lá [Estados Unidos]”, frisa Wesley Teixeira.

Wesley conta que a organização do ato surgiu após um ato on-line da Coalizão Negra por Direitos feito por meio de uma live de mais de três horas de duração  para denunciar as ações violentas das forças de polícia no Rio de Janeiro . No meio da transmissão surgiram informações do assassinato de Floyd, então "começa a perguntar, o que nós fariamos?”, conta.

"Acho que os atos apontam a nossa intenção e a nossa relação com os nossos irmãos [dos Estados Unidos]. Nós sofremos do mesmo problema que é o racismo, que não nos deixa respirar . Não nos deixa respirar quando deixa a gente morrer pelo vírus sem um sistema de saúde adequado, não nos deixa respirar quando nos mata de fome, não nos deixa respirar quando nos mata de tiro”, explica Wesley a relação entre os atos brasileros e os americanos

“Não queremos morrer nem de vírus, nem de fome, nem de tiro é o que nos mobilizou a ir para a rua. O Estado está com um projeto de morte, o estado está determinado a nos matar. Chegou o momento em que a gente precisa dar uma resposta”, complementa.

Marta* também faz parte do movimento de favelas e periferias do Rio de Janeiro, ela conta que as manifestações intensas nos Estados Unidos e a repercussão da pauta racial na imprensa foram fatores importantes para a convocação do ato, mas frisa que o estopim foram as sucessivas operações policiais violentas que culminaram nas mortes de adolescentes, muitos sem associação ao crime organizado.

Asssim com Wesley, ela cita os 13 jovens mortos durante operação no Complexo do Alemão ; Igor Gonzaga, de 21 anos, morto em Acari; Rodrigo Cerqueira, de 19 anos, estudante morto no Morro da Providência ; João Pedro, de 14 anos, assassinado dentro de casa em São Gonçalo ; e a operação na Cidade de Deus com diversos disparos enquanto voluntários entregavam cestas básicas nas casas dos moradores. 

“Tomar essa decisão foi muito dificil. A gente não quer convocar um ato que seja vetor de contaminação, mas a gente fez uma avaliação que a gente vai morrer de qualquer forma, porque o estado está matando a gente de tiro e de Covid porque não tem leito suficiente no hospital, não tem assistência miníma de saúde pública e nem de segurança social", declara Marta.

"A gente foi pra rua chamar a atenção disso e obviamente aproveitando a esteira das manifestações dos Estados Unidos que tem como pauta central o antirracismo que é nossa pauta também historicamente no Brasil e nas favelas”, acrescenta. 

A militante se refere ao chamamento do ato e decisão de se manifestar em meio à pandemia do novo coronavírus (Sars-cov-2).

Covid-19 e protestos 

 O presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) é alvo constante de críticas por incitar aglomerações e apoiar as manifestações semanais a favor do seu governo.

Membros da oposição partidária e de coletivos organizados que negam a política bolsonarista aguardavam o fim da pandemia para convocar a população e construir um movimento contra o presidente, mas Wesley diz que há uma urgência no momento que o país enfrenta que torna necessária a ocupação das ruas.

“Nós não queriamos ir para a rua, não era vontade nossa, pelo contrário, estavamos garantindo que as pessoas não fossem. Quem não está garantindo (que as pessoas fiquem em casa) é o estado. É muito diferente o Bolsonaro ir para um ato e nós irmos", defede o Wesley.

O Movimenta Caxias, o Comitê de Crise do Complexo do Alemão, o Movimento Liberdade Ativa de Parada de Lucas, a Frente CDD Acontece, são organizações que atuam nas favelas e perifierias do Rio de Janeiro. 

Elas são responsávei desde o início da pandemia do novo coronavírus por realizar ações de voluntariado que envolvem distribuição de cestas básicas, alcóol em gel, kits de higiêne pessoal, apoio na solicitação do auxílio emergencial, com o intuito de garantir que os moradores de regiões mais vuneráveis do estado pudessem cumprir o isolamento social.

“Esse tempo todo que estamos cuidando da vida das pessoas, tentando diminuir as desigualdades que o estado provoca, o Estado em vez de oferecer auxílio oferece bala. Nosso papel não é produzir política pública. Mas o que a gente faz nas favelas é implementar política pública", diz Marta.

"A única política que o Estado promove nas favelas é da militarização e da morte. Essa política da morte que é voltada para a população negra acontece diariamente nos territórios periféricos”, acrescenta.

Marta concorda que não foi fácil tomar a decisão de ocupar as ruas para defender a luta antirracista neste momento de pandemia.  

“É meio que uma contradição. A gente passou os últimos três meses falando com as nossas favelas sobre não ir para a rua e se cuidar. Mas a gente convocou este ato porque não dava para ficar em casa quando eles vão nos matar dentro da nossa casa”, reafirma.

“Os culpados não são as pessoas que estão indo protestar contra a morte, porque a polícia entra na favela e mata no meio de uma pandemia. A discussão é por que está tendo operação policial durante a pandemia de Covid-19? Por que o estado ao invés de estar implementando políticas públicas de redução de desigualdades só está aumentando essas desigualdades quando se ausenta?", indaga. 

Os líderes do movimento garantem que é feita divulgação ampla para que todos os manifestantes utilizem equipamentos de proteção individual durante o ato, mantenham distância, evitem aglomerações no protesto e não compareçam caso sejam do grupo de risco ou morem com pessoas que são.

Para isso, os organizadores mudaram o local da manifestação amanhã  (7) que será realizada na Avenida Getúlio Vargas,em frente ao Busto de Zumbi dos Palmares na Praça Onze, no Centro do Rio de Janeiro. Espaço mais amplo do que a manifetsação do dia 31 de maio.



Silenciamento do Movimento Negro 

Em meio à explosão da pauta racial nas discussões da imprensa e das redes sociais, o presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo, foi flagrado chamando o Movimento Negro de "escória maldita" e desferindo falas pejorativas contra a Mãe Baiana de Oyá , a líder religiosa Adna Santos. 

A Fundação Palmares é uma autarquia do governo federal responsável por, dentre outras funções, promover a cidadania, a identidade, a memória e a preservação das manifestações afro-brasileiras.

Wesley Teixeira repudia de forma incisiva as declarações de Camargo. “Eu como evangélico condeno qualquer forma de falta de respeito ou racismo religioso ”, declara. 

“O que ele fala hoje é a partir do projeto do nosso inimigo, mas o nosso inimigo sempre se aliou à algumas figuras para tentar nos deslegitimar . Isso não é de hoje. Desde o capitão do mato”, salienta.

Wesley relembra diversas conquistas do Movimento Negro brasileiro que são marcos da formação histórica do país e da luta por cidadania e cita que tais conquistas "mostram que o projeto que tinha de nos exterminar perdeu”, em alusão ao projeto eugenista do século XIX e XX no Brasil:

  • Racismo foi incluído como crime na Constituição Federal de 1988
  • Demarcação de terras indígenas e quilombolas
  • A lei nº 12.711 de 2012 que determina as cotas raciais nas instituições de ensino vinculados ao MEC
  • A lei nº 10639 de 2003 que inclui o ensino de história da África na base comum curricular
  • A inclusão do questionário sobre cor no Censo

"Se o presidente da (Fundação) Palmares hoje está podendo falar isso foi porque o movimento negro nos trouxe até aqui. Ele pode nunca ter feito parte, mas sem dúvidas se ele hoje tem a liberdade que tem de falar foi por causa do movimento negro”, defende Wesley.

Marta também repudia as falas de Camargo e diz que “ele reproduz o racismo da branquitude que está em volta dele. É um corpo negro instrumentalizado que está prestando um papel de deserviço”. 

A Coalizão Negra por Direitos encaminhou uma representação à Procuadoria Geral dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal pedindo a abertura de inquérito civil contra Sergio Camargo, por conta da "sistemática ação racista na condução da Fundação Palamares".

No entanto, Camargo não é o único alvo de críticas. Wesley aponta a imprensa brasileira como uma das responsáveis por invisibilizar a luta secular do movimento negro braisleiro e ao mesmo tempo repercutir de forma comovente quando as respostas são dadas no plano internacional .

“A cobertura da mídia aos atos dos Estados Unidos era reafirmando que vida negras importam, então a mídia faz uma cobertura explicando que o que estava acontecendo nos Estados Unidos é decorrente da truculência policial, mas não admitia a truculência policial que acontecia aqui no território”, aponta.

Marta faz apontamentos na mesma linha de Wesley e diz que “A imprensa inteira está focada na narrativa antirracista internacional sem prestar atenção que esse é um fenômeno e um processso que acontece aqui também”.

* O nome da fonte foi alterado para garantir sua segurança e preservar sua imagem