Era novembro de 2017 , em uma sala do luxuoso hotel Caesar Business Belvedere, região Centro-Sul de Belo Horizonte.
Nela, um grupo de funcionários da mineradora Vale e consultores ouviu, possivelmente pela primeira vez, que o Fator de Segurança (FS) para liquefação da Barragem I - Córrego do Feijão, em Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte, estava bem abaixo do recomendado pelos padrões internacionais.
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A palestrante é a mestre em engenharia geotécnica pela Universidade de São Paulo (USP) Maria Regina Moretti. Ela explica que o real índice de segurança
da barragem era 1,06 e não 1,3 como registrado anteriormente e considerado o mínimo aceitável segundo a literatura mundial do setor.
Durante os 14 meses que se seguiram, a palestra foi tema de conversas e troca de mensagens entre funcionários, fornecedores e consultores da Vale, mas nada gerou as medidas necessárias para evitar o o que ocorreu no dia 25 de janeiro deste ano.
A barragem I - Córrego do Feijão se rompeu deixando 252 vítimas, já identificadas, mais 18 pessoas desaparecidas, em sua maioria, funcionários próprios e terceirizados da mineradora. O rompimento, além de uma da tragédia humana que sensibilizou o País, tornou-se o maior desastre trabalhista da história do Brasil.
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As informações estão apresentadas, com clima de roteiro de seriado
, no livro "Brumadinho: a engenharia de um crime", dos jornalistas mineiros Lucas Ragazzi e Murilo Rocha.
Os autores tiveram acesso as documentos obtidos pelo Inquérito 62/2019 da Polícia Federal, que investiga criminalmente o rompimento da barragem, e a depoimentos da CPIs de Brumadinho no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
O livro aponta os bastidores de um crime que envolve negligência e corrupção.
“Depois de Brumadinho, o que a gente viu foram as empresas auditoras começando a retirar os laudos de estabilidade de outras barragens. Mas porque elas só fizeram isso depois? O que a gente percebe é que existia um pacto corrupto entre empresas mineradoras e auditoras para criar uma situação de segurança”, avalia Murilo Rocha, um dos autores.
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Ele salienta que, como documentado no livro, em novembro de 2017, além da mina I - Córrego do Feijão, mais nove barragens
também estavam abaixo do nível de segurança. “Pelo menos 10 barragens estavam em situação igual ou pior que a de Brumadinho. (Estavam) com fator de segurança, ou probabilidade de ruptura, fora do padrão”, salienta Rocha.
As barragens em risco antes da ruptura em Brumadinho, eram Dique B e Capitão do Mato (Nova Lima), Taquaras (Nova Lima), B1, IV-A e Menezes II (Brumadinho), Laranjeiras (São Gonçalo do Rio Abaixo) e Forquilha I, Forquilha II e Forquilha III (Ouro Preto). A maioria delas foi paralisada após o rompimento da barragem I.
Repercussão
"Brumadinho: engenharia de um crime" foi lançado na última quarta-feira (23) na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e, segundo Murilo Rocha, já repercutiu. “Com a cobertura da imprensa, a Vale já está se reposicionando sobre algumas denúncias do livro”, aponta.
Um capítulo do título traz a resposta da empresa sobre as denúncias descritas nele.
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Para o jornalista o livro tem um papel de “registro histórico”, e de denúncia. “Não é sobre A, B ou C, mas uma denúncia sobre a situação da mineração
, principalmente em Minas, mas no Brasil. Um setor que se autoregula, cria as próprias leis. E o poder público só acompanha, por falta de estrutura. O poder público apenas carimba”, declara Rocha.
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Após o rompimento da barragem de Fundão da Samarco, em Mariana, no dia 5 de novembro de 2015, a Vale criou um Sistema de Gestão de Riscos Geotécnicos (GRG) para evitar outros rompimentos, e se comprometeu a cumprir regras mais rígidas de controle. Como mostra o livro, e o epsódio de novembro de 2017, isso não aconteceu. “Eles faziam as regras e eles mesmos descumpriam”, acrescenta Rocha.
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O título dos jornalistas mineiros traz várias relações entre o rompimento da barragem em Brumadinho e a tragédia da Samarco em 2015
. O rompimento da barragem de Fundão destruiu o distrito de Bento Rodrigues e vitimou 19 pessoas. Até hoje, a nova Bento Rodrigues não saiu do papel.
"Os dois eventos têm muito em comum : mortes em larga escala, destruição ambiental, omissão do poder público, ambição, lucro e negligência do setor privado. Há também personagens, empresas, desculpas e práticas criminosas repetidas nos dois desastres", afirmam os autores na justificativa do livro.
Uma dessas coincidências envolve o diretor do complexo de Brumadinho à época do rompimento da Barragem I. Como o livro mostra, ele era, em 2015, diretor da mina de Alegria, da Vale, que, como um das proprietárias da mineradora Samarco, utilizava a barragem de Fundão como destino para jogar o seu próprio rejeito de minério de ferro.
Esse diretor chegou a ser indiciado em 2015 , após o rompimento da barragem em Mariana, “mas foi retirado da denúncia final, pelo Ministério Público”, conta Rocha. “São os mesmos erros e os mesmos discursos”, acrescenta Rocha sobre a relação entre as duas tragédias.
Alerta vermelho em junho de 2018: mais uma vez ignorado
Outro episódio impressionante trazido pelo livro dos jornalistas mineiros acorreu no dia 11 de junho de 2018. Menos de oito meses antes do rompimento da barragem I, uma tentativa de amenizar o risco pode ter sido crucial para que a estrutura sofresse o colapso em janeiro de 2019.
O fato é que mesmo pressionados, segundo o livro, auditores como a engenheira Maria Regina Moretti mostraram-se irredutíveis e não alteraram “a metodologia para determinar o Fator de Segurança da barragem do Córrego do Feijão".
Por isso, com o objetivo de aumentar o Fator de Segurança da barragem I, a mineradora decidiu instalar drenos para diminuir a quantidade de água no interior da estrutura. Mesmo sem consenso entre os consultores, se a medida seria melhor ou traria mais risco, 14 drenos foram instalados. Mas algo deu errado na colocação do 15º.
"Pelo menos dois piezômetros (medidor de pressão de fluidos) de B1 detectam o aumento repentino da pressão sobre o solo em partes da estrutura provocado pelo fluxo inesperado de água. Às 15h, a água injetada no 15º dreno irrompe de forma contínua a 15m de distância lateral e 10m acima do ponto por onde entrou, atravessando o rejeito em direção ao topo. Nesse momento, a Vale decide parar o procedimento", descreve o livro.
Além de colocar a estrutura em risco, o incidente de junho de 2018 ressaltou a falta de conhecimento que a empresa tinha da real situação da barragem.
A engenheira Cristina Malheiros, funcionária da Vale e responsável técnica pelo monitoramento e pela inspeção da barragem I chega a avaliar o evento com nível 6 de risco , o segundo mais grave. De 15 a 20 pessoas se revezam para 'estancar' os vazamentos de água e os trabalhos seguem por cerca de quatro dias.
Mais uma vez, relata o livro, funcionários, técnicos e consultores são envolvidos, mas sem medidas efetivas.
Após o rompimento do dia 25 de janeiro, Cristina Malheiros prestou depoimento à PF, e às CPIs do Congresso e da ALMG. Nessas ocasiões, a engenheira afirmou que agiu "conforme as determinações previstas no incidente", relata o livro.
Em seu depoimento no Senado, porém, Malheiros se recusou, segundo a obra, a ver o momento exato do rompimento da barragem projetada em um telão. Ela trabalhava nos escritórios que destruídos pelos rejeitos de minério em 25 de janeiro de 2019, mas neste exato dia, Malheiros estava de folga.
"Brumadinho: a engenharia de um crime" também traz uma coletânea de imagens feitas na cobertura jornalística do desastre. Ele ainda terá lançamentos em Brasília e São Paulo.
Serviço:
Brumadinho: a engenharia de um crime
Ed. Letramento
Preço R$ 49,90
Próximos lançamentos:
05/11 - Brasília
Café Quanto
19h
09/11 - São Paulo
Livraria Tapera Taperá
11h