Fachada do TSE
Roberto Jayme/Divulgação TSE - 05.04.2022
Fachada do TSE

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou que os partidos políticos devolvam quase R$ 65,1 milhões aos cofres públicos em função de irregularidades no uso da verba do fundo partidário de 2016, última prestação de contas julgada pela Corte, segundo levantamento feito pelo GLOBO. O valor representa 8,8% dos R$ 737 milhões repassados às legendas naquele ano.

Entre as irregularidades constatadas pelo TSE estão despesas não comprovadas pelas legendas; recebimento de verba de fonte vedada; compras com a verba pública consideradas dispensáveis; além do descumprimento da aplicação de 5% dos recursos do fundo em programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. A última falha, comum em quase todos os partidos, ganhou anistia da Corte em 2019 e 2022, quando os ministros autorizaram a utilização dos 5% não aplicados nas eleições subsequentes. O PL, partido de Jair Bolsonaro, é um deles: não aplicou nenhum real dos R$ 2,3 milhões da verba.

"Parte importante das irregularidades que levam à reprovação de contas dos diretórios nacionais dos partidos políticos tem relação com a falta de democracia intrapartidária: seja no descumprimento do repasse obrigatório de 5% dos recursos públicos recebidos para a promoção da participação feminina na política, seja na ausência de distribuição desses recursos para os diretórios estaduais e municipais", afirma Gabriela Araujo, advogada e professora de Direito Eleitoral na Escola Paulista de Direito.

A demora em julgar a utilização dos recursos públicos pelos partidos mostra a dificuldade de punição pela Justiça Eleitoral. A maioria dos partidos respondeu ao GLOBO que ainda está recorrendo da decisão sobre a prestação de contas do fundo partidário de 2016, a prestação mais recente a ser julgada. Enquanto isso, o Congresso tem feito andar projetos que anistiam dívidas partidárias. Em abril, o Congresso promulgou a Emenda Constitucional que anistia os partidos que não cumpriram nas eleições passadas a reserva de 30% dos recursos para candidaturas femininas, exigência estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal em 2018. Um outro projeto de reforma do código eleitoral, aprovado pela Câmara no ano passado e em tramitação no Senado, concede outras anistias e limita multas aos partidos.

O levantamento do GLOBO também mostra que nenhum partido teve a prestação de contas do fundo partidário de 2016 totalmente aprovada pela Corte até o momento. A reportagem localizou apenas quatro — MDB, PCdoB, Republicanos e Novo — com contas “aprovadas com ressalvas”. As demais foram reprovadas. Em pelo menos 11 casos ainda cabe recurso.

Quem lidera a lista de maior devedor é o PROS, com uma dívida de R$ 11,2 milhões. Uma fatia se refere à compra de uma aeronave no valor de R$ 404,1 mil sem apresentação de contrato ou outros documentos. O TSE também questiona o investimento milionário em aquisição de maquinário para parque gráfico. Segundo a Corte, somente com a compra de imóveis — cinco lotes na cidade de Planaltina, em Goiás — foi desembolsado R$ 1,3 milhão. Ainda foram gastos mais de R$ 500 mil em projetos de arquitetura e construção das instalações. Soma-se, ao final, o valor do maquinário, de R$ 3,9 milhões. Aos ministros, a sigla disse que o investimento possibilitou uma economia de 22% dos gastos com a produção de materiais gráficos, mas não conseguiu comprovar.

Segundo na lista dos devedores, o PT, partido do pré-candidato e ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, precisa devolver R$ 9,5 milhões. A motivação do ressarcimento e desaprovação das contas foi o uso desse valor sem a devida comprovação. De acordo com o TSE, as despesas pagas com os recursos do Fundo Partidário devem ser acompanhadas de descrição detalhada da atividade contratada e, quando necessário, dos contratos e demais comprovantes. O partido disse que recorreu ao Supremo Tribunal Eleitoral (STF) sob a justificativa que seus argumentos não foram levados em consideração.

O PSDB, que deve ressarcir R$ 4,1 milhões ao erário, teve irregularidades consideradas pela Corte de “gravidade acentuada”. O GLOBO não localizou o julgamento definitivo das contas, mas a Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias do Tribunal Superior Eleitoral (ASEPA/TSE) e o Ministério Público Eleitoral (MPE) destacaram a contratação de pilotos de aeronave e o aluguel de bens sem demonstração da vinculação com atividade partidária, além do pagamento de salários “muito superior” aos valores de mercado. Em nota, o partido disse que o TSE reconheceu a redução do valor a ser devolvido, de iniciais R$ 20 milhões para os atuais R$ 4,1 milhões. "O PSDB está apresentando os devidos recursos processuais", diz a legenda.

Para Marcelo Issa, diretor-executivo do Transparência Partidária, a desaprovação em massa das contas e pedidos de ressarcimento aos cofres públicos não são reflexo de uma rigidez do TSE, como alegam as legendas, mas do mau uso do dinheiro público:

"O partido tem autonomia para usar os recursos, mas isso não significa um cheque em branco para gastar de modo descontrolado, contratando serviços não prestados, adquirindo produtos com sobrepreço. Isso a Justiça Eleitoral não pode permitir. E o que vemos são irregularidades se repetindo ano a ano e, geralmente, envolvendo os mesmos partidos e dirigentes", afirmou Issa.

Segundo o diretor do Transparência Partidária, a desaprovação em série das contas partidárias tem gerado como reação tentativas frequentes de flexibilização das regras eleitorais. Uma delas é o projeto de lei do novo Código Eleitoral, aprovado na Câmara dos Deputados no ano passado e pendente de votação no Senado.

A proposta abre brecha para as legendas usarem os recursos públicos de acordo com seus interesses — hoje, os gastos são restritos à atividade partidária. O PL também permite que as siglas contratem empresas privadas de auditoria, retirando a competência da Justiça Eleitoral, que analisaria apenas o relatório produzido pela contratada. Outra mudança é em relação ao valor das multas decorrentes da desaprovação de contas. No modelo atual, o cálculo é de 20% do valor apontado como irregular, mas se aprovada a nova legislação, haverá um teto de R$ 30 mil. Ainda há uma “licença” para realizar gastos irregulares no valor de até 20% do total recebido e previsão para mudar o prazo da Justiça Eleitoral para a análise da prestação de contas, que cairia de cinco para três anos, sob pena de prescrição.

Atualmente, a Justiça Eleitoral julga as contas no limite do prazo, o que, segundo Issa, se deve a três fatores: o aumento exponencial de recursos públicos para as campanhas, em especial após proibição de doação de pessoas jurídicas; a estrutura enxuta da Justiça Eleitoral; e a falta de investimentos em tecnologia da informação e inteligência artificial, o que poderia tornar as análises mais céleres e efetivas.

"Em 2014, tínhamos 130 servidores espalhados por Tribunais Regionais Eleitorais para fiscalizar R$ 370 milhões. Quatro anos depois, em 2018, tínhamos a mesma quantidade de servidores para fiscalizar R$ 3,4 bilhões, em valores corrigidos pela inflação", diz Issa.

Michel Bertoni Soares, advogado eleitoralista e membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP, afirma que resolução que rege a prestação de contas partidárias determina que os gastos sejam comprovados por meio de notas fiscais, sendo possível, na ausência delas, apresentar outros documentos, como contratos ou comprovantes de prestação de serviço:

"Na prática, contudo, muitas vezes há um certo excesso na exigência de outros documentos, fazendo com que as despesas comprovadas por nota fiscal sejam consideradas irregulares", afirma o especialista, que faz parte da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político. "É fundamental que a aplicação dos recursos seja verificada pela Justiça Eleitoral, mas não devem ser exigidos documentos que inviabilizem a comprovação dos gastos, especialmente quando a nota fiscal é apresentada. A eficiência da análise das contas não pode ser medida apenas por desaprovações e determinações de recolhimento."

O que dizem os partidos


Cidadania, MDB, PDT, PT, União Brasil, PSDB, Agir, PSC, PV, Avante, PSTU, PSOL, PSD e Solidariedade disseram que estão recorrendo. O Podemos informou que vai discutir o assunto na Justiça. O Patriota afirma que sempre entregou suas contas com a documentação correta. O Democracia Cristã afirmou que aguarda publicação do acórdão para avaliar recurso. A Rede alega que ainda não foi notificada da decisão. Brasil 35 e PCB solicitaram parcelamento da dívida, enquanto Novo já quitou e PCdoB está em fase de pagamento. Os responsáveis pelas contas do PHS não foram localizados. Os demais não responderam.

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