Os ataques à democracia nunca estiveram tão presentes na sociedade brasileira. E quem os incentiva, paradoxalmente, é o principal representante da escolha democrática: o presidente da República.
Jair Bolsonaro (sem partido), através de atos e falas, instiga seus apoiadores a atentarem contra o estado democrático de direito. Para o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), isso ocorre porque Bolsonaro "dobra a aposta na violência e na incitação a grupos fanáticos".
Um dos exemplos é um vídeo que circula nas redes sociais e aplicativos de mensagens onde manifestantes a favor do presidente aparecem fardados e dizem que "ele não está sozinho". "Quer dizer que vocês querem derrubar o nosso presidente? Deixa eu falar um negócio rápido. Ele não está sozinho não, tá? Junta o que vocês tiverem de melhor e tenta", diz um dos apoiadores.
Apesar da gravidade dos ataques, o parlamentar do PSOL diz que eles são resultados de medidas do presidente que não estão sintonizadas com o que a maioria dos brasileiros deseja, mas "com a pauta golpista de uma base radicalizada e violenta".
"A grande ameaça à democracia e à vida dos brasileiros é o presidente da República. Ele está usando as instituições de forma autoritária para viabilizar seu projeto golpista. É como um cupim que está corroendo por dentro os pilares do Estado Democrático de Direito ", diz Freixo.
Em muitas ocasiões, as vítimas dos ataques receberam ameaças de morte e agressões físicas, sendo caracterizadas por elas como riscos à democracia e medidas estratégicas para intimidar opositores.
Neste final de semana, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), também foi vítima de ataques e viu manifestantes protestarem em frente à sua casa . Por meio de nota, o tucano disse que "estes fanáticos extremistas aumentaram o tom das agressões a mim e ao estado de São Paulo".
O tucano diz no documento que estes grupos são cada vez menores, porém "perigosamente violentos", uma vez que os envolvidos se dirigiram à residência dele. A família do governador também foi atacada por grupos de apoiadores ao presidente Jair Bolsonaro. "Eles partem de pessoas sem limites, guiadas por uma cegueira destrutiva, pelo ódio, pelo fanatismo sem precedentes", escreveu o governador.
Outra vítima é o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ), que afirma receber ameaças de morte, agressões e andar com segurança privada.
Na avaliação do deputado, os grupos que apoiam o presidente Bolsonaro não são legítimos. O que os deslegitima, porém, é a manifestação de um discurso contra a democracia. "Os discursos de ódio e antidemocráticos que esses grupos levantam são um problema geral", afirma.
"A democracia está em risco, sim. Desde que o Bolsonaro está no poder. Porque com o discurso e as atitudes que ele tem, ele a coloca em risco. A democracia é feita pelas pessoas. Não pela constituição, mas pelo que as pessoas acreditam que a constituição representa", diz Miranda.
Para o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay , porém, tais grupos não são "um risco real para a democracia", mas ele admite que eles causam "instabilidade".
"É extremamente ruim, causa instabilidade. No momento em que todos deveríamos estar preocupados exclusivamente, ou muito prioritariamente, com a vacina, temos a nossa atenção desviada por esses movimentos políticos, que eu não diria infantis, porque são coordenados pelo presidente da república, mas que certamente são irresponsáveis", afirma o advogado.
Kakay também reconhece em Bolsonaro uma figura que incentiva a ações de grupos radicais. "O presidente desde o início incentivou ações mais violentas com o seu próprio comportamento. No sistema presidencialista, a pessoa do Presidente da República tem uma força simbólica muito grande. Então, é claro que esse incentivo tem um reflexo na posição desses grupos mais fanáticos de apoiadores", acrescenta.
Ele cita como exemplo as ocasiões em que Bolsonaro incitou manifestantes a invadirem o Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso Nacional e sinalizou que a população não deveria seguir as recomendações sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS) para enfrentar a pandemia da Covid-19.
"O presidente deveria ter mais responsabilidade no trato com esses grupos que são claramente desprovidos de qualquer capacidade de análise crítica. Tem várias formas de fazer esse enfrentamento [de grupos fanáticos]. Quando existem ameaças e até agressão física, tudo isso tem que ser possível de ser investigado e punido, se for o caso", diz o advogado.
Quem são?
Os grupos que apoiam o presidente Bolsonaro se espalham pelo mundo físico e pelo digital. Entre eles estão o "Resgata Brasil", que agora integra o inquérito de investigação no Supremo Tribunal Federal por envolvimentos em atos antidemocráticos, o "Intervenção Selva" e o "Intervencionista".
Em comum, estão os pedidos de intervenção militar, do fim do isolamento social e do fechamento dos comércios. A linguagem é de "recrutamento" e de encorajamento do sentimento de indignação. Eles consideram impopulares as medidas tomadas por prefeitos e governadores para conter o avanço do novo coronavírus. Também estão presentes publicações anti-ciência, sobre o combate ao comunismo, contra o aborto e contra a corrupção.
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A Lei de Segurança Nacional
Para o advogado criminalista Kakay, outra consequência ruim da organização de apoiadores radicais bolsonaristas é a "banalização" do uso da Lei de Segurança Nacional (LSN). Ele alerta que a LSN tem sido aplicada repetidamente para abrir investigações.
"Essa banalização começou ainda com o ex-ministro [Sergio] Moro, que instrumentalizava a lei para atingir inimigos políticos dele e do Bolsonaro. E hoje, infelizmente, isso se estende de uma forma indiscriminada", afirma.
Kakay não nega a importância da LSN para a garantia do funcionamento das instituições, mas avalia que é preciso analisar as manifestações mais duras e refletir se não são "reações que representam nada mais do que simplesmente a livre liberdade de expressão".
Segundo ele, "a liberdade de expressão é um dos fundamentos de toda estrutura democrática de qualquer país que se pretenda realmente preservar a dignidade do cidadão, que é a base de toda a democracia. Então, é necessário que a gente não faça essa confusão".
A diferença, de acordo com Kakay, está na estrutura e na quantidade de membros destes "batalhões". "Esses grupos que cada vez mais se alimentam de violência, grupos apoiadores do presidente Bolsonaro, eles tem que ser contidos através do código penal mesmo. Se fazem ameaças, se fazem baderna de forma que pode chegar a atingir alguém ou mesmo através de ameaça e agressão física. Ou dependendo, se for grupo estruturado, sem banalizar a aplicação, evidentemente, da Lei de Segurança Nacional. É necessário que a sociedade tenha essa capacidade de reagir", finaliza.
Discussão sobre uso da LSN chegou ao STF
Diante do aumento do uso da LSN, essa discussão chegou, inclusive, ao Supremo Tribunal Federal. Em uma live no último sábado (20), o ministro Ricardo Lewandowski comparou a lei a um "fóssil normativo", querendo dizer que ela é muito antiga para ainda ser utilizada.
"A Lei de Segurança Nacional foi editada antes da nova Constituição, da Constituição cidadã, da Constituição que traz na sua parte vestibular um alentadíssimo capítulo relativo sobre direitos e garantias fundamentais. O Supremo precisa dizer se esse fóssil normativo é ainda compatível com não apenas a letra da constituição, mas com o próprio espírito da Constituição. É um espectro que ainda está vagando no mundo jurídico e precisamos, quem sabe, exorcizá-lo ou colocá-lo na sua devida dimensão", disse Lewandowski.
Durante uma sessão em 2016, Luís Roberto Barroso fez um comentário no mesmo teor, dizendo que a LSN era uma coisa que devia ser superada. "Já passou a hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira. Há, no Congresso, apresentada, de longa data, uma nova lei, a Lei de Defesa do Estado Democrático e das Instituições, que a substitui de maneira apropriada", afirmou.
De acordo com reportagem desta semana do jornal O Globo , outros ministros que foram consultados de forma reservada também vêm um exagero no uso da lei recentemente. A última ocasião em que ela foi utilizada foi contra o youtuber Felipe Neto. A abertura de uma investigação foi feita a pedido do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho de Bolsonaro, após o influenciador chamar o pai dele de "genocida".