Idolatrado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), o ex-chefe do DOI-Codi Carlos Alberto Brilhante Ustra foi o primeiro militar brasileiro a responder a processo e ser condenado por tortura durante a ditadura militar (1964-1985). Uma das pessoas que sofreram na mão dele foi médico e vereador em quinto mandato Gilberto Natalini (PV-SP), que o considera um "monstro" e diz que ele não pertencia à "raça humana".
"Em agosto de 1972, fiquei lá [no DOI-Codi] mais de um mês apanhando barbaramente do Ustra. Eu perdi 60% da audição de um ouvido e 30% do outro porque o Ustra fazia questão de dar choques elétricos nas minhas orelhas para que eu entregasse uma pessoa", conta o vereador à reportagem do iG .
"O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra
, na época major, me torturou muitas vezes pessoalmente e também mandou a sua equipe para torturar. Eu sou vítima direta do herói do
presidente do Brasil", acrescenta o parlamentar, que garante que não fazia parte de nenhuma organização contra o governo militar, mas ainda assim passou cerca de 30 dias preso em São Paulo.
O motivo de sua prisão, conta, foi por manter relacionamento com um grupo político que distribuía jornais contrários à ditadura militar . Os agentes do DOI-Codi queriam saber quem era a responsável pela criação e distribuição dos exemplares. "Eu desmaiei umas três ou quatro vezes [durante as sessões de tortura], mas o nome não saiu da minha boca. Estávamos preparados para morrer, mas não entregar ninguém. Era uma questão de caráter", relata.
O contato de Natalini com todos os grupos políticos que atuavam contra o regime, sejam pacíficos ou armados, deu-se quando ele ingressou na Escola Paulista de Medicina, em 1970, ainda com 17 anos. O hoje médico organizou um movimento estudantil com o intuito de preservar o centro acadêmico após o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), considerado o mais duro decreto entre os 17 baixados em 21 anos de ditadura. "A gente [estudantes de medicina] atendia os militantes em atos de solidariedade", lembra.
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Além dos choques elétricos
, Natalini conta que Ustra utilizava outros métodos de tortura, como a cadeira do dragão
, espécie de cadeira elétrica onde a pessoa era amarrada aos
pulsos por cintas de couro e o torturador amarrava fios em locais do corpo, como orelhas, língua, órgãos genitais, dedos e seios, no caso das mulheres. "Uma vez ele me colocou
nu sem sapato em cima de duas latas pequenas, com fios conectados. Jogou água com sal no meu corpo e me deu choque a noite inteira. Além do choque, ele me bateu muito, no lombo,
nas costas, com pedaço de madeira que era tipo um cipó. Ele não mandou, ele bateu várias vezes", recorda o parlamentar.
"Foi mais ou menos um mês de tortura na mão do Ustra. Ele era um monstro, não pertencia à raça humana. Era um ser bestial que torturava pessoalmente homens, mulheres, jovens, velhos e crianças", acrescenta, mas ressalta não sentir raiva de seus piores algozes. "Eu não tenho ódio do Ustra e dos outros torturadores. Uma vez, em meu consultório, eu atendi um torturador meu. Eu o tratei com delicadeza e apenas ao final da consulta eu me identifiquei. Ele apenas levantou e saiu correndo, sem falar nada", lembra.
Quando questionado sobre as declarações de Bolsonaro sobre Ustra, a quem o presidente já elogiou abertamente mais de uma vez, Natalini foi enfático. "Como médico dou dois
diagnósticos para Bolsonaro: ou ele é insano mentalmente e precisa ser tratado com psiquiatra ou ele saiu da raça humana e entrou no campo da bestialidade", diz. "A tortura está
fora da raça humana e não é animalesca porque animais não torturam. Esse é o diagnóstico que faço como médico pra ele defender e achar que torturador é um herói nacional",
opina.
Natalini também diz que nunca imaginou que, 34 anos após o fim do período militar no Brasil, iria presenciar um presidente defender o seu principal torturador. "Quando ele fala, eu sofro pelo Brasil. Nunca imaginei isso. Mas eu convoco o presidente Bolsonaro para tentar voltar à espécie humana. O que ele defende está fora da espécie humana e eu falo com tranquilidade porque eu vivi e sei o que é tortura: abjeta, ignóbil, abominável, sem justificativa. 'Ah, mas o cara era terrorista e não sei o quê'. Não, nada justifica a tortura de um ser
humano sobre o outro", salienta.
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Para ele, as declarações de Bolsonaro, que já havia exaltado Ustra quando votou pela abertura do processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 2016, são pensadas e se trata de uma estratégia política. "Ele usa essa estratégia para haver o debate por dias. Essa coisa de anticomunismo, anti-PT. O PT nunca foi comunista ou marxista. É mentira dizer que Lula era comunista. Mas é uma estratégia estudada de Bolsonaro e, na minha opinião, uma estratégia macabra. Ele joga o Brasil no atoleiro da divisão social e ideológica. Faz com que o ódio renasça", avalia.
"Com esse tipo de fala, Bolsonaro levanta o ódio no Brasil e cutuca os fantasmas do País. O insano do Bolsonaro quem faz isso. O nosso presidente, infelizmente, é insano ou é bestial", finaliza o vereador , que presidiu a Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, Vladimir Herzog.