O economista Carlos Von Doellinger, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada(Ipea), teceu críticas a um dos principais pontos da quarta edição do estudo chamado de Atlas da Violência, uma parceria da fundação federal com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
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O presidente do Ipea disse aos jornalistas que estavam presentes na coletiva de lançamento da pesquisa nesta segunda-feira (3), no Rio, que gostaria de fazer um "reparo" num dos trechos que trata sobre as mortes por arma de fogo (há um capítulo inteiro do trabalho dedicado ao tema). O nome de Von Doellinger, que se disse a favor da posse e do porte de armas, foi sugerido pelo ministro da Economia Paulo Guedes ao presidente Jair Bolsonaro em novembro do ano passado.
Ao discursar no início do evento, o presidente do Ipea destacou dados que pontuou como expressivos ( como a porcentagem de 6% do PIB gasta com segurança em 2016 ), ressaltou que os dados são referentes ao ano de 2017 e não têm relação "com as prioridades do atual governo" e pediu licença aos pesquisadores responsáveis pelo Atlas da Violência para expressar a própria opinião sobre armas. Elas são um tema abordado expressivamente no estudo (são citadas mais de 40 vezes) e foram objeto de um dos dados mais explorados pelos autores: o crescimento do número de mortos por disparos, que teve uma alta de 6,8 em 2017.
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"Faço apenas um reparo, um apontamento sobre o estudo trata a relação sobre o número de armas em circulação e o aumento da criminalidade. Como cidadão, me incomoda a impossibilidade do cidadão de bem, sem antecedentes, ter uma forma de defender a integridade física, de sua propriedade e da sua família. Acho que esse é um direito do cidadão", disse Von Doellinger.
Ao continuar a fala, o presidente do Ipea relatou uma experiência vivida em Angola onde, segundo ele, os números de homicídios se mantiveram baixos mesmo diante da população armada. Os culpados por levarem a criminalidade para o país africano teriam sido traficantes brasileiros e não as regras flexíveis para posse e porte de armas de fogo.
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"A taxa de homicídio era baixíssima no país quando todos andavam armados. Anos depois, começou a aparecer a criminalidade. Os ministros me disseram que os brasileiros trouxeram um negócio de drogas e o povo começou a consumir. E a criminalidade começou a surgir, era praticamente desconhecida. O governo de lá resolveu adotar normas rigorosas de repressão ao tráfico e a polícia não tem muito esse negócio de direitos humanos. Conseguiram reprimir as taxas de criminalidade e elas caíram novamente", relatou Von Doellinger, sem mencionar dados estatísticos ou informações númericas sobre o assunto.
O Atlas da Violência mostra que o Estatuto do Desarmamento, de 2003, foi um dos fatores que ajudaram a conter o aumento da taxa de homicídios. Embora ela siga crescendo, segundo os pesquisadores, a alta poderia ser muito maior se houvesse mais armas em circulação.
Menos de 24h
De acordo com a asessoria de imprensa do Ipea, o presidente da fundação conheceu os resultados do estudo no início da noite de terça-feira, menos de 24h antes do evento. Os dados foram apresentados a ele pelo técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea, Daniel Cerqueira, que participou da explanação à imprensa realizada nesta segunda-feira. O pesquisador foi o responsável por mostrar a Von Doellinger o trabalho elaborado por 13 pesquisadores: um documento de 114 páginas ilustradas com mais de 30 tabelas e 20 gráficos.
Apesar de ter discursado no início do evento, o presidente do Ipea não acompanhou a apresentação na íntegra. Ele deixou o auditório do prédio em que o instituto funciona pouco após a explanação dos dados completar 1h, antes de serem apresentados parte significativa dos dados sobre armas de fogo, mortes de mulheres e feminícidios e violência contra a população negra e LGBT+, esse último um extrato social analisado pela primeira vez pelo Atlas.
Ao discursar após o presidente do Ipea, o técnico Daniel Cerqueira minimizou a saia-justa. Ele disse que a fala de Von Doellinger foi um exemplo de como a fundação é democrática e, mais tarde, em entrevista a jornalistas, chamou o episódio de "festa da democracia". Ele afastou a possibilidade de os próximos estudos sofrerem interferência política.
"Fico até emocionado de trabalhar aqui na Ipea. O presidente não teve acesso ao estudo e, apesar da maneira como ele pensa, não interferiu no processo", garantiu Cerqueira, com a concordância de Samira Bueno, diretora executiva do FBSP.
'Senha para tragédia'
Quando o presidente do Ipea já havia deixado o local, Cerqueira e Samira foram questionados pela imprensa sobre as possíveis consequências dos decretos assinados por Bolsonaro nos primeiros cinco meses do governo. Cerqueira afirmou que espera que as duas medidas, que preveem a flexibilização das regras para a posse e o porte de armas, sejam revogadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
"O Supremo deve revogar e eu espero que aconteça. Devemos prestar atenção nisso, porque as pessoas se sentem empoderadas com uma arma em mãos. Entre 20% e 25% dos homicídios acontecem por conflitos interpessoais, não por latrocínios. E estamos num país em que as pessoas estão muito raivosas, até mesmo quando discutem sobre política e futebol. É uma senha para a tragédia", declarou Cerqueira.