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Está quase impossível prestar ajuda em Gaza, diz ONU: 'Tememos o pior'

Portal iG entrevistou Jens Laerke, porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários; confira

Foto: Divulgação/ONU
Crise na Faixa de Gaza desafia ajuda humanitária

Enquanto  bombardeios israelenses continuam a atingir a  Faixa de Gaza e suprimentos básicos de ajuda humanitária ainda não são autorizados a na região palestina, a Organização das Nações Unidas (ONU) vê seu trabalho no local se tornar cada vez mais difícil.

Em entrevista exclusiva concedida ao portal iG nesta quinta-feira (19), Jens Laerke, porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (UNOCHA, na sigla em inglês) em Genebra, na Suíça, afirma que é "completamente impossível" fornecer a mesma ajuda humanitária que era fornecida na Faixa de Gaza antes do início da guerra.

Normalmente, Gaza já vive uma situação difícil. De acordo com estimativas da ONU, cerca de 60% dos mais de 2 milhões de palestinos que vivem na Faixa de Gaza dependem de assistência humanitária internacional quando a vida é "normal". Desde o último dia 7 de outubro, porém, a  situação piorou rapidamente.

Depois que o grupo Hamas, que controla a Faixa de Gaza, realizou ataques surpresas a Israel , o país respondeu com um cerco total à região. Água, comida, remédios, eletricidade e combustível não podem entrar, enquanto feridos não podem sair em meio ao colapso do sistema de saúde . Enquanto isso, bombardeios israelenses atingem Gaza todos os dias.

A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA, na sigla em inglês), que atua na Faixa de Gaza, já não tem mais como atender a todas as pessoas que deixaram suas casas. Desde que Israel ordenou evacuação para o sul de Gaza enquanto se prepara para invadir o norte por terra , a ONU estima que mais de 1 milhão de palestinos deixaram suas casas. No momento de publicação desta matéria,  mais de 4 mil palestinos foram mortos nesta guerra, enquanto mais de 13,5 mil estão feridos.

"Gaza está simplesmente à beira do abismo. Tememos o pior se não conseguirmos muito rapidamente um acesso seguro e sustentado às pessoas e se os bombardeios não cessarem", afirma Laerke, que cita a importância do Brasil nas negociações internacionais para a abertura de corredores humanitários. Confira a seguir a entrevista completa.

Entrevista com Jens Laerke, porta-voz da UNOCHA

Foto: Divulgação/UN OCHA
Jens Laerke, porta-voz da UNOCHA

Portal iG: No último final de semana,  Philippe Lazzarini, comissário-geral da UNRWA, disse que os funcionários da agência "já não eram capazes de fornecer assistência humanitária" adequada na Faixa de Gaza. Como está a situação agora?

Jens Laerke: Ainda existem cerca de 13 mil funcionários da UNRWA em Gaza. A esmagadora maioria deles são funcionários nacionais, o que significa que são palestinos que vivem lá em Gaza com suas famílias e foram afetados por esta crise como o resto da população.

É claro que o trabalho deles foi limitado pelos contínuos ataques aéreos que temos visto desde o dia 7 de outubro. Pelo menos 14 dos funcionários da UNRWA foram mortos e vários outros perderam familiares. A situação é profundamente traumática para nossos colegas de lá e é extremamente difícil para eles trabalharem.

Um aspecto disso é que o combustível está acabando. Quando você está trabalhando em uma operação humanitária, você precisa se movimentar, obviamente, para chegar até as pessoas que você está tentando ajudar, e se você não tiver combustível, é simplesmente impossível se movimentar.

Então, eles estão tentando fazer o melhor que a situação permite, mas é completamente impossível fornecer assistência humanitária perto da escala que faziam antes. Estimamos que, antes da eclosão desta crise, cerca de 60% das pessoas em Gaza já dependiam diariamente da assistência internacional. E hoje a situação é obviamente ainda pior.

Portal iG: Qual é a maior emergência local no momento? Água, combustível, medicamentos?

Jens Laerke: Eu diria que é tudo. A água está criticamente baixa. Estamos ouvindo relatos de alguns litros no máximo por pessoa por dia. Sabemos que o padrão humanitário internacional de água por pessoa por dia é de 15 litros e isso é para beber, cozinhar, lavar, higiene pessoal e assim por diante, por isso estamos num nível muito, muito baixo.

Estamos vendo que as pessoas, é claro, precisam beber água, então o que fazem é beber água imprópria, água salobra que retiram dos poços e de qualquer reserva que possam encontrar. Isto aumenta a preocupação com surtos de doenças transmitidas pela água, que podem ser mortais.

Essas doenças são muito difíceis de conter depois que se espalham e muito difíceis de tratar, mesmo nos melhores momentos. E, no meio de uma zona de guerra, é quase impossível fazer muita coisa em relação a uma crise hídrica.

Também sabemos que o nível de comida está extremamente baixo. A UNRWA distribuiu novamente o que tinham nos seus armazéns de pão, e o estoque está se esgotando neste momento, enquanto conversamos.

Remédios e equipamentos médicos também estão em grande falta. Faltam coisas simples, como analgésicos. Há centenas, senão milhares, de pessoas feridas e com dores insuportáveis. Só podemos imaginar o horror que é você não conseguir nem mesmo ter alívio da dor e muito menos tratamento adequado para os ferimentos e doenças.

Portal iG: Que tipo de relatos você tem recebido dos colegas que estão em Gaza, atuando na ajuda humanitária?

Jens Laerke: O que ouvimos dos nossos colegas em Gaza é muito, muito terrível. É, como o nosso Secretário-Geral sublinhou muitas vezes, um pedaço do mundo que está simplesmente à beira do abismo. E tememos o pior se não conseguirmos muito rapidamente um acesso seguro e sustentado às pessoas e se os bombardeios não cessarem.

É por isso que pedimos um cessar-fogo humanitário imediato, para podermos entregar ajuda e dar às pessoas algum descanso dos bombardeios implacáveis ​​a que têm sido sujeitas há muitos e muitos dias.

Portal iG: E como estão as negociações para a entrada de insumos?

Jens Laerke:  Temos o nosso coordenador de ajuda de emergência, Martin Griffiths, no Cairo [capital do Egito, país que faz fronteira com Gaza], ao qual se juntou hoje o Secretário-Geral da ONU. Ele falou sobre discussões muito profundas e focadas com as autoridades do Egito e outros interlocutores, inclusive da comunidade internacional mais ampla, sobre como exatamente a operação de ajuda vai funcionar.

Não é algo onde você possa simplesmente atravessar uma fronteira e descarregar toda a ajuda que tiver, é uma zona de guerra altamente perigosa. Como trabalhadores humanitários, estamos desarmados, é claro, estamos praticamente desprotegidos e as pessoas que recebem ajuda devem poder fazê-lo de forma segura e sustentada.

Não se pode entregar ajuda num dia e não no outro. Ajuda é comida, água e remédios e é consumida no mesmo dia, então é preciso repetir a entrega, dia após dia, para que faça algum sentido. Portanto, essas discussões estão em andamento, ainda não tivemos uma conclusão, mas é claro que esperamos que isso aconteça o mais rápido possível.

Portal iG: E como você enxerga a importância do Brasil nessas negociações internacionais?

Jens Laerke: É muito importante ter o Brasil levantando a voz nestas questões como membro do Conselho de Segurança, mas também como Estado membro. Certamente, toda a comunidade internacional está sendo tomada por esta crise e apelamos a todos os Estados-membros, grandes ou pequenos, para que utilizem toda e qualquer influência que tenham para nos ajudar com as partes em conflito, exercendo pressão sobre elas, para que possamos colocar em funcionamento uma operação de ajuda e, esperançosamente, salvar o maior número de vidas possível.

Sabemos que em Gaza já morreram mais de 3 mil pessoas e cerca de 12 mil ficaram feridas [dados de quinta-feira, quando aconteceu a entrevista], o que é terrível. Precisamos acabar com isto, e isso só pode ser feito se conseguirmos o apoio de todos os países do mundo que exercem a sua influência sobre aqueles que estão lutando esta guerra.