Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan
Divulgação/ Nato
Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan

Em seu apoio à Ucrânia, os Estados Unidos e seus aliados esticam a corda até onde entendem que o Kremlin irá aceitar, aproveitando-se de uma aposta errada da Rússia para enfraquecê-la. Embora a estratégia tenha sido bem-sucedida até aqui, os membros da  Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) não podem ler a mente de Vladimir Putin, e podem acabar por cometer algum perigoso erro de cálculo. A avaliação é de Timothy Sayle, professor de História e diretor do Programa de Relações Internacionais da Universidade de Toronto. Ele é o autor de "Aliança duradoura: uma história da Otan e da ordem global do pós-guerra" ("Enduring Alliance: A History of NATO and the Postwar Global Order"; Cornell, 2019).

Em entrevista ao GLOBO , Sayle discute a atual estratégia americana na Europa, a perspectiva de adesão de Finlândia e Suécia e o que impede um sistema de defesa europeu autônomo. Diz também que um famoso ditado do primeiro secretário-geral da aliança, Lorde Ismay, permanece válido: mais de 70 anos após a sua criação, a Otan ainda tem o objetivo de "manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães para baixo".

Como entender a motivação de Finlândia e Suécia de mudarem uma política de décadas e se candidatarem à adesão à Otan justo agora, no calor do momento?

Há dois lados nisso. O primeiro, claro, é como a disposição de Vladimir Putin de usar a força contra a Ucrânia causou preocupação em  Finlândia e Suécia de que os russos agora estão dispostos a invadir territórios vizinhos. Isso teve impacto sobre os líderes dos países, e também um efeito dramático sobre a opinião pública, que pediu a adesão. Mas há também outro lado: os russos estão tão enfraquecidos agora em termos de sua força militar disponível que é inconcebível tomarem qualquer ação militar contra esses Estados para tentar dissuadi-los de se juntar à Otan, ou mesmo para ameaçar uma ação militar. Essa fraqueza atual da Rússia torna este um momento muito bom para a adesão de Finlândia e Suécia.

Há um ditado famoso que diz que a Otan foi criada para manter a União Soviética fora, os Estados Unidos dentro e a Alemanha para baixo. É possível dizer que isso continua sendo verdade?

Ainda acho que essa continua sendo a melhor maneira de entender por que a Otan continua a existir. A aliança fornece essa ligação entre a América do Norte e a Europa, por causa do tratado, e, principalmente, do seu comando militar e de sua organização. É assim que ela mantém os EUA dentro, por meio do tratado e das relações entre todos os Exércitos. Quando se fala em manter os alemães para baixo, podemos dizer isso com mais educação agora, e afirmar que a Otan oferece um lar para a Alemanha na estrutura de segurança europeia, e evita que os alemães tenham que tomar decisões muito mais difíceis sobre sua política de defesa. Quanto à ideia de manter os russos fora, nos anos 90 e 2000 houve dúvidas se isso era necessário, e Estados da Europa do Leste argumentaram que sim, ou os russos tentariam voltar a exercer influência e controle nessa região. A atual disposição da Rússia de usar a força na Ucrânia fortalece essa ideia, de que é necessária uma organização para manter a Rússia fora da Europa.

Há algum tempo se fala sobre a criação de um sistema de defesa europeu autônomo, apesar de muita divisão dentro da UE. A guerra encerrou essa ideia de uma vez por todas?

A guerra travou as engrenagens que poderiam se mover em direção a um sistema de defesa europeu autônomo. Mas não acho que a ideia acabou. A ideia existe desde o final da década de 1940, e continuará existindo, porque atende aos interesses de alguns Estados europeus; da França, em particular, mas também outros veem valor neste sistema. Intrigou-me ver os britânicos oferecerem publicamente garantias de segurança para a Suécia e a Finlândia, e depois os franceses. Isto me faz perguntar se existe a possibilidade de os britânicos e franceses usarem suas capacidades nucleares para criar um guarda-chuva de proteção para a Europa. Por outro lado, com a adesão da Suécia e da Finlândia à Otan, parece-me claro que a Otan é, ao menos para este futuro previsível, a única alternativa levada em consideração para a segurança europeia. Isto poderia mudar a partir de decisões tomadas em Washington, com possíveis futuros presidentes menos interessados na Otan, forçando os europeus a encontrarem uma forma de se defender.

O senhor pensa, por exemplo, em um possível retorno de Donald Trump, que tinha menos interesse na aliança?

O retorno do presidente Trump ou de outro presidente que perceba vantagens em desafiar a Otan poderia obrigar os europeus a tentar desenvolver as suas próprias habilidades autônomas de defesa. Mas não necessariamente precisa ser Trump, nem alguém como ele: também pode ser, por exemplo, um aumento da atenção americana para as tensões na Ásia, ou uma guerra lá, que leve os americanos a decidirem que precisam comprometer muito mais recursos para a região, e então a solicitar que os europeus sigam sozinhos. Não acho que isso seja provável, penso que os americanos vão trabalhar para preservar a Otan, mas talvez chegue o dia em que os americanos, que ficaram no caminho da defesa autônoma europeia, finalmente abram esse espaço.

A retórica dos EUA em relação à Rússia tem sido muito mais agressiva do que a que vemos em Paris e Berlim, por exemplo. O que pode tornar essas diferenças mais explícitas?

Dentro da Otan, geralmente há duas atitudes que coexistem. Uma delas é ajudar a Ucrânia a vencer, e a outra é garantir que os ucranianos não saiam derrotados. Por ora, essas atitudes podem coexistir, mas elas entrarão em maior tensão se a guerra mudar significativamente de curso, seja com os russos ganhando vantagem, ou, alternativamente, se os ucranianos preponderarem e realmente conquistarem grandes vantagens contra os russos. Em um desses momentos, quando houver escolhas reais a serem feitas sobre pressionar os ucranianos para alcançar um cessar-fogo, ou então sobre aumentar o apoio à Ucrânia para impedir uma vitória russa, esse seria o ponto mais difícil para as relações entre os aliados. Especialmente entre, de um lado, Washington e países como o Reino Unido, que têm sido fortes apoiadores da Ucrânia, e países como França e Alemanha, que precisam existir na mesma massa terrestre com a Rússia. Serão as fortunas da guerra na Ucrânia que ampliarão as diferenças entre os aliados.

Pode-se dizer que os Estados Unidos estão desenvolvendo uma nova grande estratégia para a Europa, ou o enfraquecimento da Rússia é um fim por si mesmo?

Essa é uma pergunta muito interessante. De muitas maneiras, vejo continuidade na política americana. Os americanos optaram por não intervir diretamente na guerra, ou seja, não expandiram seu perímetro de defesa. E apesar da retórica, continuam a jogar por uma cartilha antiga, de se aproveitar quando outra grande potência comete um erro. Há o mesmo padrão de como os americanos reagiram quando a União Soviética invadiu o Afeganistão, e os americanos apoiaram os mujahedin para enfraquecer os soviéticos e tornar seu erro tão custoso quanto possível. E, claro, outros Estados fizeram isso com os EUA no passado, como a URSS e os chineses apoiando o Vietnã do Norte. Isso é uma espécie de padrão de política das grande potências, aumentar os custos quando um rival dá um passo em falso. Mas estou curioso para saber se os EUA vão usar a guerra como uma oportunidade para mudar sua estratégia em relação à Europa, para dizer aos europeus que devem aumentar seus gastos com defesa e se organizar para se proteger, para assim se concentrar na Ásia. Isso ainda não aconteceu, mas essa pode ser uma oportunidade para os EUA mudarem sua grande estratégia para a Europa.

O compromisso da Otan com a Ucrânia não para de se expandir: inicialmente, mandavam pequenas armas, e agora é uma ajuda bilionária e armas pesadas. Até onde vai o compromisso da Otan com a Ucrânia? E quais são as linhas vermelhas?

Como vimos, houve uma mudança nessas linhas vermelhas. Minha suposição é que os limites da Otan foram desenvolvidos e esticados de acordo com a compreensão do que os russos aceitarão. Os aliados da Otan estão jogando um jogo cuidadoso e deliberado, de levar o seu apoio ao limite do que a Rússia aceitará. Até agora, vimos que jogaram esse jogo de forma eficaz, e foram capazes de expandir os limites para continuar a apoiar a Ucrânia. O problema é que não podemos saber o que se passa dentro da mente de Vladimir Putin. A Otan pode testar essas linhas vermelhas, mas não sabe exatamente quais são as linhas vermelhas de Putin. Acredito que foram muito cuidadosos ao tentar descobri-las e ainda não as cruzaram claramente. A pergunta que não pode ser respondida exatamente, claro, é o que fará Putin decidir que uma linha vermelha foi cruzada. Então é um equilíbrio muito delicado, e esperamos que nenhum lado calcule mal.

Quantos problemas a Turquia pode criar à admissão de Finlândia e Suécia?

Em teoria, a Turquia pode negar os dois pedidos de adesão. Isso é certamente uma possibilidade. Há duas opções aqui. Uma é a Turquia usar essas negociações para obter concessões, especialmente da Suécia, em relação a expatriados turcos e a partidos políticos na Suécia. Na outra alternativa, não se trataria de concessões, realmente teriam traçado uma linha rígida contra as adesões. Isso é improvável, porque teria implicações enormes para a Otan. Se apenas um ou dois membros — a Croácia tambén sinalizou que pode atrapalhar o processo — puderem bloquear a admissão de outros dois membros, com a qual os outros 28 aliados concordam, isso levantaria questões reais sobre a viabilidade da aliança, e geraria enorme instabilidade na segurança europeia e mesmo global. Considero improvável que a Suécia e a Finlândia sejam barradas, mas, em última instância, é uma possibilidade.

Os horrores da invasão na Ucrânia solaparam uma discussão anterior, sobre se seria possível negociar algum tipo de acordo ou moratória formalizando que a Ucrânia não entraria para a Otan. O senhor entende que este possível acordo teria bastado para impedir a invasão?

É impossível para mim dizer com certeza. Mas minha suposição é que não, não teria sido suficiente. Não acho que a potencial adesão ucraniana à Otan tenha sido a única, e muito menos a principal causa da invasão russa. Entendo haver uma conjunção de uma série de coisas para provocar a invasão, e essas incluem o fato de os russos não estarem recebendo o que esperavam do acordo de Minsk. E, de maneira mais ampla, a possível adesão da Ucrânia à União Europeia talvez fosse ainda mais preocupante do que a adesão à Otan. A entrada na UE seria uma ameaça para Putin e aqueles que desejam governar a Rússia no atual modelo. Ter esse modelo econômico e político diferente em sua fronteira e em um lugar tão significativamente conectado com a Rússia e o povo russo representaria uma ameaça para o Kremlin.

Entre no  canal do Último Segundo no Telegram e veja as principais notícias do dia no Brasil e no Mundo.  Siga também o  perfil geral do Portal iG.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!