A candidata de extrema-direita às eleições presidenciais na França , Marine Le Pen, ganhou força nas pesquisas de intenção de voto às vésperas do primeiro turno, neste domingo. A guinada acontece depois que ela decidiu apostar em uma moderação parcial do seu discurso e concentrar sua campanha em promessas de alívio econômico para a classe média francesa, tentando melhorar sua imagem de política ultranacionalista e xenófoba.
Em análise recente, a empresa de pesquisas americana Harris Interactive disse que a vitória de Emmanuel Macron no segundo turno, em 24 de abril, antes dada como certa, agora é apenas um cenário dentro da margem de erro . No primeiro turno, segundo a média das pesquisas, ele terá 26% dos votos, contra 23% de sua principal adversária.
Formada em direito, Marine Le Pen entrou para a política por herança familiar. Seu pai, Jean-Marie Le Pen, disputou quase todas as eleições presidenciais desde que fundou o partido Frente Nacional, na década de 1970, até o momento em que Marine assumiu o seu lugar, em 2011, quando se tornou líder da legenda que em 2018 rebatizou de Reunião Nacional.
Desde então, Marine Le Pen busca livrar seu partido das acusações de antissemitismo e negacionismo do Holocausto que assombraram seu pai. Por outro lado, voltou suas baterias para os imigrantes e em especial para a comunidade de religião muçulmana.
Segundo o historiador Felipe Loureiro, coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), há um processo de crescente moderação retórica ou de normalização da figura de Marine Le Pen na política francesa.
Quando assumiu a legenda, ela iniciou um processo de transição nos quadros partidários, que chamou de “desdemonização” da extrema direita. A intenção era amenizar a imagem da Frente Nacional para ampliar as suas chances na corrida presidencial de 2012.
Mesmo assim, para Loureiro, o essencial da transformação na atual Reunião Nacional é mais uma obra de marketing político, que visa colher votos na direita tradicional.
"Não há dúvida que a Marine teve muito cuidado para evitar esse caráter de extrema direita, eu diria até neofascista, que o Jean-Marie expressou. Nestas eleições, ela está se mostrando mais eficiente nesse objetivo", explicou Loureiro.
Outro movimento de Marine em direção ao conservadorismo tradicional foi o uso político da pauta da igualdade de gênero. Pela primeira vez, Le Pen enfatizou o quanto a sua posição enquanto mulher permitia que ela representasse o público feminino.
"Eu sou uma mulher, e como mulher eu experimento a violência extrema, as restrições de liberdades que se multiplicam em todo o nosso país por meio do desenvolvimento do fundamentalismo islâmico", disse a candidata em seu clipe oficial de campanha em 2017.
Naquele ano, Marine Le Pen chegou ao segundo turno com o melhor resultado histórico para o partido e conquistou 34,1% dos votos.
Um dos elementos essenciais que tornaram a figura de Marine Le Pen mais palatável neste ano é a candidatura do polemista Éric Zemmour à Presidência. Considerado um político ainda mais extremista, ele fez com que ela soasse menos radical para os eleitores.
Além do mais, ao contrário do que se imaginava, Emmanuel Macron não sustentou as intenções de voto que inicialmente amealhou com a guerra na Ucrânia. As suas tentativas de assumir a imagem de líder respeitável, que ampliou as possibilidades de diálogo com a Rússia, não fizeram a sua reeleição mais fácil.
"Era esperado que o vínculo histórico de Vladimir Putin com a Reunião Nacional trouxesse dificuldades para a candidatura de Marine Le Pen. Mas, em um gesto importante para o seu futuro político, ela fez críticas à Rússia e concentrou sua campanha nas dificuldades econômicas da classe trabalhadora", afirmou Felipe Loureiro.
A reeleição de Macron também representa uma continuidade na agenda neoliberal que ele propôs no início do seu primeiro mandato, rejeitada por setores mais populares da sociedade francesa. Sobretudo pelas pressões inflacionárias que trouxe, o conflito na Ucrânia adicionou mais combustível na defesa de políticas públicas voltadas à classe trabalhadora.
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"A proposta de reforma da Previdência de Macron é muito impopular em diversos setores da sociedade. Os trabalhadores franceses acreditam que, fundamentalmente, a medida pretende acabar com direitos já consagrados. Marine Le Pen, por outro lado, defende um Estado mais protetor, com certa recuperação do bem-estar social para os 'verdadeiros cidadãos franceses'", afirmou Loureiro.
Mesmo com a mudança de postura pública, uma pesquisa da Kantar Public divulgada em janeiro de 2022 diz que 40% dos franceses ainda classificam Marine Le Pen como representante da “extrema direita nacionalista e xenófoba”, enquanto 46% dos entrevistados dizem que ela integra uma “direita patriótica, ligada aos valores tradicionais”.
A desistência de criminalizar o aborto e o apoio ao casamento homoafetivo são duas das mudanças mais recentes abraçadas pela candidata. Fora isso, Le Pen abandonou o objetivo de vetar a gravidez, que é um conjunto de técnicas usadas para ajudar casais inférteis (ou com fertilidade reduzida) e mulheres solteiras a ter filhos.
O que esperar de um eventual mandato de Le Pen à frente da presidência da França?
Le Pen diz que, com a sua vitória, “imigrantes ilegais, delinquentes e criminosos estrangeiros” seriam expulsos da França. Segundo os planos do partido, “critérios de mérito e assimilação cultural”, ainda não explicados, passariam a conduzir o acesso à cidadania do país.
Marine promete retirar a autorização de residência de qualquer estrangeiro que não tenha trabalhado pelo período de um ano na França, restringir benefícios de assistência social apenas aos franceses e acabar com os vistos de reunificação familiar (quando uma pessoa faz um pedido de residência porque um de seus parentes vive no país).
Também é esperada uma gestão linha dura à frente da segurança pública, com a restauração de penas mínimas e a extinção de qualquer possibilidade de redução do tempo de prisão para os condenados, além da presunção de legítima defesa para a aplicação da lei.
Já as propostas do governo para a religião focam em “erradicar as ideologias islâmicas e todas as suas redes do território nacional”. Apesar das semelhanças com o projeto político de Jean-Marie quando se trata de imigração e segurança pública, Marine defende pautas diferentes na economia.
Seu pai pretendia implementar uma agenda mais liberal, enquanto Marine quer financiar o crescimento nacional com investimentos públicos, criar impostos sobre fortunas e renacionalizar estradas. Outra frente de ataque é a defesa do aumento do salário de professores, profissionais da saúde e trabalhadores que recebem até três salários mínimos mensais.
"Seu governo representaria a reversão dos projetos neoliberais que Macron encampou, com um aumento importante da participação do Estado na promoção de políticas de bem-estar social, só que focadas exclusivamente no que Le Pen entende serem cidadãos franceses", disse Felipe Loureiro.
Para ampliar a matriz energética francesa, Le Pen pretende relançar os setores nuclear e hidrelétrico. Ela também quer reduzir um tributo equivalente ao ICMS brasileiro, que incide sobre o gás, a eletricidade e os combustíveis.
Uma das mudanças mais significativas em seu projeto político é que ela não defende mais a saída da França da União Europeia. Mesmo assim, para Loureiro, um mandato dela à frente da Presidência da França poderia levar a dissonâncias no bloco, com o país assumindo uma linha parecida com a da Hungria de hoje, governada por Viktor Orbán, também da direita radical.
"Podemos esperar uma França que vai adotar políticas discriminatórias em temas simbólicos como a religião, contra o islamismo, e uma França muito mais refratária a aceitar imigrantes de fora da Europa, sobretudo vindos do Oriente Médio, da Península Arábica e do Norte da África."