Refugiados saindo da Ucrânia
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Refugiados saindo da Ucrânia

Um dos piores efeitos colaterais de uma guerra localizada não envolve armas ou as perdas políticas e econômicas: é a necessidade dos civis de deixar tudo para trás para tentar salvar sua vida e a de suas famílias.

A cena de milhares de pessoas desesperadas nas fronteiras, em travessias pequenas ou grandes, por terra ou por mar, se repete cada vez mais por conta das dezenas de conflitos mundo afora. E a União Europeia, para o bem ou para o mal, está no centro de várias crises humanitárias.

Desde o início da última década, o Velho Continente vem recebendo grandes fluxos de refugiados, migrantes ou apátridas, com seu ápice em 2015. E se, por um lado, milhões de pessoas foram acolhidas graças à liderança política de alguns países, do outro, cenas de preconceito e rejeição injustificada se somaram aos montes.

Mas se os discursos de acolhimento eram questionados quando os refugiados eram africanos e árabes, a eclosão da guerra na Ucrânia fez surgir uma onda de solidariedade e de apoio quase unânime ao acolhimento dos que fogem do conflito - que já somam cerca de 4,4 milhões de pessoas.

Especialistas consultados pela ANSA apontam dois grandes pontos para essa mudança de comportamento: as questões políticas contra a Rússia e também a xenofobia e o preconceito que pessoas de fora da Europa sofrem.

Para a professora do curso de relações internacionais da FAAP, Vanessa Braga Matijascic, além da "sensibilização" dos europeus com uma guerra muito próxima em questões geográficas, essa abertura "não deixa de refletir a politização do tema".

Ressaltando que acordos internacionais diversos determinam que os "países não podem fazer distinção" entre os que fogem de guerras, essa abertura maior tem a ver com a questão política.

"A situação tem muito mais a ver com a questão relacionada ao que envolve a política desse conflito armado e também para transformar essa facilitação para a entrada de refugiados ucranianos em um ato humanitário - mas também em um ato político para mostrar para a Rússia que esses países estão acolhendo bem os refugiados ucranianos", disse Matijascic à ANSA.

O professor e coordenador da pós-graduação em relações internacionais da UFABC e autor do livro "Refugiados - o grande desafio humanitário", Gilberto Rodrigues, pontua que há uma "afinidade política" entre os países que mais acolhem no momento - Polônia, Romênia, Moldávia e Hungria - e "a oposição ideológica que esses países mantêm com a Rússia".

"Aqui entram diversos fatores históricos e políticos que remontam ao período de dominação soviética. Tudo isso somado mostra que esses países fronteiriços da Europa Oriental não apenas mantêm suas fronteiras abertas, mas facilitam o trânsito e a permanência das populações ucranianas para dentro de seu território, além de demonstrar grande empatia pela situação dessas pessoas. Deveria ser sempre assim, atendendo ao Direito Internacional dos Refugiados e à ética de acolhimento humanitário. Mas sabe-se que nem sempre isso ocorre", destacou o especialista à ANSA.

Já a professora Lígia Maura Costa, da FGV EAESP, também aponta um preconceito histórico contra refugiados de outros países como uma das principais causas da mudança de postura.

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"A distinção racista entre os migrantes não é uma novidade e, infelizmente, não surpreende quando considerado o ponto de vista histórico da questão. Sempre há reclamações contra os refugiados indesejados - seja por origem, raça, gênero, religião ou qualquer outro ponto. E um dos problemas disso é que acaba provocando um tráfico de pessoas que estão desesperadas para sair. E as mulheres, infelizmente, estão sempre nessa linha de frente", ressalta.

Costa pontua que há diversas regulamentações e acordos que proíbem distinções, especialmente por racismo, "mas sabemos que, em muitas vezes, as pessoas pretas são colocadas em segundo plano", como ocorreu até mesmo na Ucrânia.

Logo nos primeiros dias de fuga, surgiram diversas denúncias nas redes sociais sobre cidadãos negros colocados em filas de espera após os brancos. O governo da Nigéria chegou até a fazer um protesto formal contra a Polônia pela discriminação - que foi negada por Varsóvia.

A questão dos países que acolhem agora a maior parte dos ucranianos também é interessante, já que alguns deles estão entre os mais críticos das regras de acolhimento que a União Europeia aplicou nos últimos anos.

Chamado de Visegrád, o grupo reúne Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia e por inúmeras vezes travou batalhas dentro da União Europeia ou simplesmente não cumpriu as regras de realocação do bloco europeu. Até mesmo durante a atual crise, eles se manifestaram contrários a aceitar imigrantes residentes na Ucrânia.

"Não deixa de ser irônico, e até certo ponto contraditório, que esses países que se recusam sistematicamente a receber pessoas refugiadas no âmbito da União Europeia sejam agora os protagonistas na recepção de mais 4 milhões de ucranianos em cerca de um mês de conflito. Polônia e Hungria são os países da UE onde mais cresceram a xenofobia e a discriminação contra migrantes nos últimos anos e são referências para grupos e partidos de ultradireita na Europa", ressalta Rodrigues.

Até o momento, a maior parte das nações trabalha com a possibilidade de que essa seja uma guerra curta. Mas e se o conflito se prolongar, será que o acolhimento nessas nações será o mesmo? Para Costa, considerando que todos os países ainda estão tentando se recuperar também economicamente dos efeitos prolongados da pandemia de Covid-19, problemas de acolhimento podem surgir se a guerra se prolongar.

"Se a situação econômica não melhorar, se não houver retomada, até quem tem olhos azuis poderá sofrer com as consequências também pelo motivo de que ninguém, em nenhum lugar do mundo, conseguiria absorver rapidamente tanta mão de obra simultânea", pontua.

Já Rodrigues ressalta que "cenários pós-conflito são propícios a muitos abusos, a violência contra mulheres e crianças".

"O retorno que, no Direito Internacional dos Refugiados, é chamado de repatriação voluntária não depende apenas das pessoas quererem retornar, mas das condições de estabilidade política e social do país de origem. E isso vai tardar meses, talvez mais de um ano. O que certamente ocorrerá é que a solidariedade será mantida, porém com um chamamento progressivo a um compartilhamento com outros países, inclusive de fora da UE", diz.

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