*Por Carlos Eduardo Vasconcellos e Ailma Teixeira
A Rússia tem se transformado em uma espécie de pária da indústria cultural desde que Putin ordenou a invasão da Ucrânia, iniciada no dia 24 de fevereiro. De lá para cá, além das sanções econômicas, uma série de sanções culturais — e até esportivas — foram implementadas pelo ocidente até que o presidente russo anuncie um cessar-fogo na Ucrânia.
A lista de punições no âmbito cultural é extensa, passando pela anulação de um curso gratuito sobre Dostoiévski pela Universidade de Milão, na Itália, até o cancelamento da exibição de filmes no país por parte de três dos maiores estúdios de Hollywood: Warner, Sony e Disney. 'Punições' simbólicas também aparecem a todo momento. Um caso famoso foi o de um restaurante brasileiro que decidiu 'banir' o strogonoff do cardápio em 'represália' à Rússia.
Artistas também estão sendo prejudicados por conta de suas nacionalidades, ainda que não sejam apoiadores do regime de Putin. No âmbito esportivo, a Rússia foi suspensa de todas as competições internacionais de futebol e pode perder a chance de ir à Copa do Mundo da FIFA. As punições, porém, acabam por atingir a população russa como um todo sem que os responsáveis pelo conflito sejam afetados.
Para Vicente Ferraro, mestre em Ciência Política pela Escola Superior de Economia de Moscou e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP, tais represálias têm traços xenofóbicos e podem ter o efeito contrário do esperado pelo Ocidente.
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"Caracterizam xenofobia no sentido de que há uma punição coletiva, a responsabilização de um povo inteiro por decisões de alguns políticos. Esse tipo de sanção, que atinge a sociedade diretamente, pode dar mais substância para esse discurso do Putin de que há uma tentativa de sufocar o país. Contribui para Putin se fortalecer recorrendo a esse argumento mais nacionalista, culminando em um efeito contrário ao que o Ocidente esperava."
O pesquisador chama atenção para a 'seletividade' destas punições. Como exemplo, cita os Estados Unidos que, apesar da participação em conflitos como a Guerra do Iraque, nunca sofreu com esse tipo de reação.
"Há uma seletividade geopolítica que define o que importa mais e o que importa menos. Isso tem a ver com o fato de os Estados Unidos ainda serem uma potência hegemônica. A gente vive em um contexto de transição, de uma ordem unipolar para multipolar, mas ainda assim os EUA conseguem fazer com que seus interesses prevaleçam. Então, na Guerra do Iraque, havia uma oposição grande por parte de outras potências como a Rússia e a França, que se posicionaram contra no Conselho de Segurança da ONU, mas não conseguiram coordenar uma ação coletiva contra os EUA na época. Ao mesmo tempo, vemos que os Estados Unidos mostram uma grande capacidade de coordenar uma ação coletiva contra a Rússia", explica.
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"O front do campo de batalha é apenas um dos fronts dessa guerra. Tem o front econômico, o da imagem (que, no caso, a da Rússia está saindo prejudicada), e o front do soft power. Além disso, vivemos em um contexto hoje em que os meios de comunicação, com as redes sociais, são muito mais fortes do que há décadas atrás, então as imagens do conflito circulam muito rapidamente e isso traz um impacto na percepção das pessoas que contribui para a deterioração da imagem russa. Além disso, o conflito atual é muito mais próximo da Europa, o que acaba conseguindo uma atenção maior das potências europeias do que outros conflitos que estavam mais distantes", explica.
Para Rodrigo Ianhez, historiador especialista no período soviético, não faz sentido realizar uma perseguição xenofóbica à Rússia, já que até mesmo opositores a Putin estão sendo indiscriminadamente atingidos por essas manifestações. Ademais, explica Rodrigo, esse tipo de reação hostil acaba dando uma 'arma retórica' ao governo russo.
"Claramente esse não é o caminho para lidar com a situação. Nós vimos situações em que até aula sobre Dostoiévski, um escritor do século XIX, foi cancelada. Há artistas que não podem criticar abertamente o regime sem colocar os próprios familiares em uma situação no mínimo desconfortável ou eventualmente mais grave, pessoas que não podem simplesmente escolher entre uma carreira no exterior e uma carreira na Rússia", explica.
Ianhez afirma que essas xenofóbicas ofensivas já existiam de maneira latente e, após o início do conflito, passaram a ser mais difundidas.
"[A guerra] é uma 'desculpa' para que seja praticada essa russofobia, essa xenofobia. Não é à toa que os russos são retratados na indústria cultural com esteriótipos extremamente negativos. As mulheres hipersexualizadas, os homens alcoólatras ou mafiosos… São representações que não correspondem à realidade do povo russo e que já existiam há décadas. É um produto até da Guerra Fria", argumenta.
"Infelizmente essa situação tende a crescer. Muitos russos que são contra a guerra, que são de oposição ao Putin já há anos, estão sendo indiscriminadamente atingidas pela xenofobia. Existem estudantes que tiveram suas bolsas canceladas, estudantes que há anos protestam contra o governo Putin. Isso tende a fazer com que, mesmo grupos de oposição, fiquem indignados em relação a essa situação. Isso dá argumentos à Rússia de que há uma perseguição. É uma situação que acaba criando uma divisão e dando certa razão a algumas posições da Rússia. Como a gente sabe, vários países sob sanção argumentam que a situação ruim do país advém das sanções, e isso acaba criando uma “boia” na qual os governos podem se agarrar. As sanções atingem principalmente o povo, não as elites, os governos não sofrem tanto e as pessoas aceitam essa visão, que muitas vezes não está errada, de que a culpa da penúra de suas vidas é daqueles que impõem essas sanções."