A senhora de cabelos brancos, olhos de um azul incrivelmente pálido e fartos dentes de ouro chorou quando me ouviu falar “Brasil”. Foi um choro desses que explodem de repente, como um espirro impossível de ser contido. Ela chorava, apertava minha mão e dizia repetidas vezes: “spasibo, spasibo, spasibo” (Obrigado em russo). Era uma típica babushka, uma vovozinha ucraniana com os cabelos cobertos com um lenço vermelho, agasalhada sob um sobretudo verde de tecido grosso e com os pés protegidos por uma bota de lã preta.
A solitária babushka estava em um campo aberto, sentada em uma cadeira de rodas, quando a encontrei. Decidi fotografar aquela cena quase bucólica. Estava no meio do caminho enlameado que dava acesso ao Rio Irpin, por onde centenas de civis escaparam, nesta terça-feira, em um dos corredores humanitários estabelecidos pela Rússia e a Ucrânia . Talvez esperasse por um filho, um vizinho, um amigo, ou mesmo um soldado que a levasse dali.
Estava tranquila. Até que o som da artilharia chegou. Primeiro espaçado. Depois intenso, alto, em cadência. Eram, claramente, disparos das forças ucranianas contra posições russas. Mas, após dias escondida em um porão, a velha senhora se agitou. Tentou levantar-se da cadeira de rodas para buscar abrigo sob a ponte agora destruída pelas forças ucranianas numa tentativa de frear o avanço das tropas russas. Não conseguiu.
Decidiu não competir com o som da artilharia. Não gritou, não falou. Apenas me olhou assustada. Empurrei a cadeira de rodas até debaixo da ponte lentamente, vencendo o terreno coberto pela lama e tomando cuidado para não derrubá-la nos pequenos declives.
Com a ajuda de dois soldados e uma jovem adolescente, levantamos a cadeira de rodas e a deixamos em algo próximo do que seria um lugar seguro naquela situação. Ela então começou a falar, a perguntar, a gesticular. Eu acho que ela queria saber de onde eu era, mas não sei se era isso exatamente o que ela dizia. Apenas respondi: “Brasil, Brasil”. E a velha babushka cedeu a toda tensão, a todo medo, a toda dor desses dias difíceis. Chorou.
Corredor de lágrimas
Ao longo desta terça-feira ela não foi a única a derramar lágrimas às margens do Rio Irpin. Após dias de bombardeios intensos e batalhas com tanques, drones e infantaria, finalmente o cessar-fogo parcial fora respeitado. E muitas pessoas como ela, idosos, com dificuldade para caminhar, acamados, puderam ser retirados dos porões e seguir para áreas distantes dos combates. Ao longo do dia, foram milhares de pessoas retiradas de Irpin, Bucha e outras pequenas cidades na periferia Oeste de Kiev. Ao contrário do que acontecera dias antes aqui, não foram registrados ataques contra os civis.
Ekaterina deixou sua casa em Bucha pela manhã. Atravessou a cidade, cruzou Irpin e chegou até a ponte que marca a entrada a Kiev três horas depois com sua mãe, seu marido e um vizinho.
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— Hoje (terça-feira) não houve ataques, vimos os soldados russos e eles não fizeram nada conosco, seguimos em segurança até aqui — contava ela, enquanto cruzava uma imensa fila de carros abandonados sobre a ponte que antes ligava Irpin a Kiev.
No domingo, exatamente aqui, famílias como a dela faziam o mesmo trajeto quando morteiros começaram a cair do céu. Foram vários disparos, ao longo de todo o dia. Um deles matou três integrantes de uma família. Na segunda-feira, esforços de retirada também foram feitos, mas pouca gente teve coragem de sair dos abrigos e enfrentar uma caminhada em terreno aberto até chegar ao único ponto de fuga.
Todos que fogem de Irpin precisam passar por um pontilhão improvisado. A água gelada volta e meia ganha os pedaços de madeira, torna tudo escorregadio e incrivelmente difícil para os mais idosos e as crianças. Várias pessoas já caíram ali. Alguns foram carregados nas costas, nos braços ou em cobertores que fizeram às vezes de macas.
— Tem sido difícil, mas temos conseguido retirar as pessoas ainda que lentamente. Há muitos problemas para retirar os mais idosos — contou Mariana Belzuhla, uma integrante do Parlamento ucraniano que coordenava os trabalhos de evacuação em Irpin.
No outro lado do rio, mais choro. Mas muitas vezes de felicidade. Cruzar aqueles poucos metros de água gelada significava a salvação para muitas dessas pessoas que precisaram passar dias sem água, energia e aquecimento enquanto as batalhas ocorriam nas ruas dessas pequenas cidades ucranianas.
A neve já havia parado de cair quando a senhora que se emocionara ao ouvir a palavra Brasil entrou em uma ambulância já do outro lado do rio. Seria levada para Kiev, como tantos outros. Ou talvez para a casa de um parente em alguma parte ainda mais distante da guerra. Sentada na cadeira de rodas ela não chorava. Não sorria. Não expressava nenhuma emoção. Apenas enfado.
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