No dia 15 de agosto, o grupo fundamentalista islâmico Talibã, tomou conta de Cabul, capital do Afeganistão . A partir desse momento, a população afegã entrou em colapso. O aeroporto da capital foi a saída que muitos encontraram para fugir do país junto às tropas americanas, que finalizaram a retirada dos aviões militares nessa segunda-feira (30) .
Imagens de civis tentando deixar o país pendurados em aviões militares dos Estados Unidos e relatos sobre o medo constante que assola a população local circulam nas redes sociais e chamaram a atenção do mundo todo.
O médico afegão Sayed Ibrahim Sadat, de 36 anos, mora em Cabul e, em entrevista ao iG , conta que, além do grupo já ter imposto diversas restrições à população local, ele e a esposa perderam o emprego após a tomada do Talibã. "Agora estou desempregado, assim como minha mulher e muitas outras pessoas. Estamos depressivos e sem esperanças como nunca estivemos em nossa vida", relata.
Sayed morou no Paquistão 30 anos atrás e foi forçado a retornar ao Afeganistão em 2014, mas agora deseja sair do país com a família novamente. A principal preocupação do médico é em relação ao ambiente em que seus filhos vão crescer com o grupo extremista no poder. "Tenho três crianças: dois meninos, de 5 e 3 anos, e uma menina que acabou de nascer, com apenas 26 dias", conta ele.
"Tudo é muito difícil agora. Meu maior medo é em relação ao futuro dos meus filhos, pois acho que eles vão se tornar terroristas se eu os mandar para a escola durante o regime do Talibã".
O médico afirma que foi agredido na noite dessa segunda pelos combatentes do grupo com o cano da arma de um deles devido à sua tentativa de escapar do país: "O Talibã também jogou fora todos os meus documentos".
"Eles [combatentes do Talibã] não permitem que as mulheres trabalhem, ouçam música, estudem, cortem o cabelo, nadem, façam compras sozinhas e muito mais coisas básicas", relata. "Agora, não posso cantar uma música, ou até assistir a filmes, mesmo meus filhos não podem assistir a desenhos na televisão".
Diante desse cenário, Rodrigo Amaral, professor de relações internacionais e especialista em Oriente Médio, explica que essa instabilidade no Afeganistão não é novidade.
“Não é 2021 que marca a ascensão do Talibã, ele é um grupo que vem de décadas passadas, ele tem uma parcela importante da população que reconhece a legitimidade desse grupo. A saída das tropas dos EUA nessas últimas semanas comprova que o projeto norte-americano de combater o terrorismo fracassou”.
O Talibã sempre foi um grupo com bastante força na sociedade afegã. Em 2018, as regiões periféricas do Afeganistão eram dominadas principalmente pelo grupo extremista.
“Quando os Estados Unidos invadiram e retiraram o Talibã, ele não foi destruído, ele se dissipou, ele foi para outros espaços na periferia do estado do Afeganistão. Eles se conectaram com líderes tribais e com outros espaços da sociedade que esse centro-urbano não se conectava. Era muito comum dizer que havia dois 'Afeganistão' na época, um seria aquele que era organizado pelos EUA com poder formal e reconhecido internacionalmente e o outro era do Talibã”, conta o professor.
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Questionado sobre o motivo do Talibã ter adotado uma imagem mais pacífica para esse novo regime, Rodrigo Amaral afirma que o novo comportamento é uma questão de organização e estabilidade.
“Não existe governo sem estabilidade e eles estão tentando pacificar, é um processo de organização. É natural que o Talibã utilize dessa narrativa, que não precisava ser usada em 1996, porque ele venceu uma guerra civil, era interna essa guerra, não cabia esse tipo de discurso naquele momento”, explica.
Mesmo sendo conhecido por sua violência, lutas em guerras e por impor restrições à população , o grupo fundamentalista não pode ser considerado um grupo terrorista, visto que o terrorismo é uma prática e não uma interpretação qualitativa, explica o especialista. De acordo com ele, o Talibã utilizou do terrorismo enquanto método em alguns momentos de resistência e guerra.
Além disso, o internacionalista não acredita que o Talibã signifique a ascensão de um grupo terrorista no poder. "Ele é um grupo organizado, pensado por intelectuais islâmicos com força militar e tem reconhecimento da população", afirma. “O que pode acontecer é ter atentados terroristas contra o Talibã, querendo reagir a esse novo governo”.
Sayed, no entanto, teme a força do grupo e afirma não poder dizer que ele e sua família estão seguros. "Eles estão indo de porta em porta atrás dos anti-Talibã e de quem trabalhou com líderes de governo anteriores", detalha. "Acho que eles não sabem onde eu moro, mudo de casa todas as noites. Hoje, estou na casa do meu tio".
O homem relata que tem tentado pedir auxílio às pessoas por meio das redes sociais, mas que, infelizmente, ninguém consegue o ajudar. "Eu não quero dinheiro ou nada do tipo, quero salvar o futuro dos meus filhos".
Talibã e a comunidade internacional
Embora o grupo fundamentalista seja reconhecido por grande parte da população afegã, é necessário também o reconhecimento da comunidade internacional para que ele alcance legitimidade. À vista disso, o Talibã deve buscar possíveis parceiros políticos internacionais, como a China, Irã, Rússia e Turquia eventualmente.
O especialista analisa o cenário atual do Talibã e afirma que atualmente “é mais favorável”, comparado ao regime passado. “Já existem conversas iniciais com os diplomatas chineses, já existem expressões públicas dos russos, dos iranianos, já é muito mais do que o Talibã tinha em 1996-2001, época em que só a Arábia Saudita, o Paquistão e os Emirados Árabes reconheciam o governo. Se o Talibã conseguir o reconhecimento da China já é muito grande, porque a China tem capacidade suficiente para sustentar uma nova agenda política no país”.
Saída das tropas norte-americanas do Afeganistão
O Pentágono informou que o último avião norte-americano com civis, militares e autoridades dos EUA deixou Cabul por volta da meia-noite dessa segunda, no horário de Brasília . A ação encerrou um conflito de quase 20 anos no Afeganistão e partiu da decisão do presidente Joe Biden, que agradeceu os soldados envolvidos e classificou a operação como um "sucesso extraordinário" , na noite desta segunda.
Sayed, no entanto, pensa o contrário. "Biden nos deixou sozinhos e não foi bem-sucedido. Assim como o ex-presidente Barack Obama, ele não sabe que o Talibã vai ser um desafio para os Estados Unidos", avalia. "Tenho certeza que o Afeganistão será um bom lugar para o terrorismo".
Segundo o professor, com a retirada dos militares norte-americanos, o Talibã deve criar novas instituições, destruir aquelas que representavam uma tentativa de “ocidentalização” e aproveitar o poder que conquistaram no território.
O afegão diz não saber o que esperar daqui para frente. "Eu não sei o que fazer, porque falhei na minha tentativa de deixar Cabul", afirma. "O futuro é sombrio. Estou apenas sem esperanças, aguardando algum tipo de mágica que sei que não vai acontecer, e rezando pelo futuro dos meus filhos", finaliza.