A retirada das tropas norte-americanas ocorreu por volta da meia-noite desta terça-feira (31), com a saída do último avião C-17 dos Estados Unidos . Em entrevista ao The Guardian , a afegã Arifa Ahmadi disse que começou o dia queimando as roupas que o Talibã provavelmente desaprovaria.
A mulher explicou que tinha um emprego, mas o perdeu depois que o grupo extremista tomou o controle do país. "Tentei muito conseguir um emprego na alfândega de Farah e consegui. Eu comemorei com meus amigos. Eu os convidei para minha casa. Ficamos muito felizes", disse ela ao jornal. "Mas eu o perdi depois de três semanas. Muitas mulheres foram convidadas pelo Talibã a deixar os cargos. Ao observar a situação, nem tentei voltar".
"Um homem com uma longa barba está sentado na minha cadeira agora", acrescentou.
Embora o grupo esteja se "esforçando" para mostrar uma face mais conciliatória, ao contrário da tomada de poder anterior , Ahmadi deixou a cidade de Farah e vive em Cabul desde a invasão do Talibã, na esperança de conseguir deixar o país.
"Tenho chorado desde esta manhã. Meu irmão saiu e comprou uma burca para mim, queimei minha calça jeans hoje. Eu queimei minhas esperanças com ela. Nada mais me fará feliz. Estou apenas esperando minha morte, não quero mais essa vida", lamentou Ahmadi.
"Desde que o Talibã tomou Farah, todos esses dias eu estava me sentindo como se estivesse caindo, e hoje tive vontade de cair no chão e morrer. Não tenho nenhum sentimento agora, sou uma garota morta. Tudo terminou para mim esta manhã, e também para todas as pessoas da cidade. Você não pode ver ninguém rindo lá fora. Um sentimento absoluto de depressão está em toda a cidade".
Nessa segunda-feira (30), o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que "um novo capítulo começou" para o Afeganistão com o fim da operação militar. De acordo com o Guardian , muitos cidadãos, no entanto, estão desesperados e formando filas em bancos para sacar dinheiro. O grupo teria ordenado que os bancos reabram com um limite de saque de US$200 (cerca de R$1035,68) por semana.
O engenheiro Nesar Karimi disse que chegou em um banco de Cabul hoje por volta das 6h, antes mesmo do estabelecimento iniciar as atividades, e já havia muita gente. "Fiquei lá até às 12h, mas fecharam o caixa eletrônico, disseram que ficou sem dinheiro e voltei para casa sem nada. Centenas de pessoas estavam lá. O Talibã estava batendo nas pessoas com canos, eu queria ficar, mas foi uma bagunça e voltei para casa. Foi meu segundo dia tentando sacar algum dinheiro, mas não consegui".
"Eu morei aqui em Cabul a maior parte da minha vida, mas nunca tinha visto a cidade assim", acrescentou. "É uma sensação de ausência de sentimentos nas ruas. As pessoas perderam todos os sentidos, agora não ligam, eu não me importo, minha geração perdeu tudo em questão de horas. As pessoas estão quebradas".
Já Jabar Rahmani, morador da cidade de Mazar-i-Sharif, no norte do país, contou ao jornal que decidiu deixar a barba crescer e usar usar roupas tradicionais afegãs como a primeira medida de precaução para "evitar a ameaça" do Talibã.
"Ninguém pode ouvir outra pessoa dizendo-lhe o que vestir ou que está na moda, mas aqui eu devo fazer isso para continuar vivo. A distância entre a vida e a morte é muito estreita com essas pessoas no controle. Barbas ou roupas podem ser uma coisa muito simples para pessoas em outras partes do mundo, mas aqui é uma luta com risco de vida", disse ele.
"Estudei a vida inteira para fazer algo, mas essas pessoas enterraram minhas esperanças. Não apenas o Talibã, mas também a comunidade internacional é responsável pelo que aconteceu com os sonhos de uma geração. Por que eles vieram, em primeiro lugar, se queriam nos deixar assim?".
Rahmani é ateu, fazendo parte de uma comunidade muito pequena no Afeganistão, que também vivia escondida e com medo, mesmo sob o governo apoiado pelo ocidente: "Não acredito em nenhum deus e há muitas pessoas como eu em Mazar e Cabul. E muitas pessoas já sabem disso, podem nos vender para o Talibã. Se eles não fizessem isso, eu ainda precisaria ir e orar cinco vezes por dia".
Reshad Sharifi, um morador de Herat, disse que os combatentes do Talibã o proibiram de usar camiseta e shorts enquanto fazia exercício físico.
"Tenho o hábito de acordar de manhã cedo para ir a uma montanha próxima em Herat. Parei por alguns dias e hoje foi meu primeiro dia caminhando e correndo sob o regime do Talibã. Sempre visto bermuda e camiseta. Fiz a mesma coisa esta manhã, mas eles me pararam apontando uma arma para mim", realtou. "Eles me disseram: 'Volte, vista-se como um muçulmano e volte.' Moro em Herat desde que eles assumiram o controle, mas não me machuquei tanto. Perdi minha esperança de vida".
*Os nomes dos entrevistados pelo The Guardian foram modificados por questões de segurança