Em março do ano passado, quando o Estado de Nova York era o principal epicentro da pandemia de coronavírus nos Estados Unidos, o governador Andrew Cuomo se tornou uma espécie de herói nacional.
Enquanto o então presidente Donald Trump minimizava os riscos da Covid-19, Cuomo, um democrata em seu terceiro mandato, apresentava uma imagem oposta, de liderança, transparência e empatia.
Seus briefings diários, com explicações detalhadas sobre a resposta à crise, eram transmitidos ao vivo pela TV e acompanhados por milhões de pessoas e chegaram a ganhar um prêmio Emmy.
Durante meses, o desempenho do governador foi exaltado pela imprensa, que brincava com a popularidade de Cuomo em artigos com títulos como "Por que todos nós temos um crush por Andrew Cuomo neste momento" ou "socorro, acho que estou apaixonada por Andrew Cuomo".
À medida que a pandemia avançava, seus índices de aprovação chegaram ao ponto mais alto desde que assumiu o governo, em 2011. O governador até publicou um livro sobre como Nova York enfrentou o coronavírus sob sua liderança.
Em meio às primárias que decidiriam quem seria o democrata a concorrer à Presidência, muitos questionavam se Cuomo não seria um candidato melhor do que Joe Biden para enfrentar Trump nas urnas.
"Em meio à crise do coronavírus, ele se tornou uma figura nacional. Sua popularidade e aprovação dispararam. Ele se tornou o anti-Trump", diz à BBC News Brasil o cientista político Harvey Schantz, professor da Universidade Estadual de Nova York (SUNY) em Plattsburgh.
Mas, nas últimas semanas, sua imagem sofreu um baque, com acusações de que ele escondeu o número real de mortes por covid-19 em lares de idosos e alegações de assédio sexual.
Cuomo agora aguarda o resultado de investigações sobre sua conduta e enfrenta pressões até de políticos de seu próprio partido para que deixe o poder.
Na sexta-feira (12/03), políticos importantes do Partido Democrata, como os senadores Chuck Schumer e Kirsten Gillibrand e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, pediram a renúncia imediata de Cuomo.
Mortes de idosos
A reviravolta na imagem de Cuomo começou no fim de janeiro, quando a procuradora-geral de Nova York, a também democrata Letitia James (que foi eleita para o cargo, e não é indicada pelo governador), divulgou um relatório com a conclusão de que o governo estadual havia reportado um número de mortes por covid-19 em lares de idosos cerca de 40% menor do que o real.
Os números divulgados inicialmente incluíam só os idosos que morreram nessas instituições e não aqueles que morreram depois de serem transferidos para hospitais.
A diferença não alterou o número total de mortes no Estado, já que os óbitos haviam sido computados, mas não incluíam a informação de que se tratavam de residentes de lares de idosos.
O episódio afetou a imagem de transparência cultivada pelo governador. Cuomo já vinha sofrendo críticas por uma ordem emitida em março de 2020, para que lares de idosos readmitissem pacientes que haviam testado positivo e ainda se recuperavam do coronavírus após receberem alta do hospital.
Segundo críticos, a medida contribuiu para aumentar o contágio e as mortes por covid-19 nessas instituições. Cuomo dizia que estava seguindo orientações do governo federal e buscava evitar que os hospitais ficassem sobrecarregados.
Ele rejeitou as críticas como ataques partidários, mas acabou revertendo a medida em maio.
Um relatório do Departamento de Saúde do Estado disse que a maioria dos pacientes enviados dos hospitais de volta aos lares de idosos não estavam mais contagiosos quando admitidos. Segundo o governo, o vírus havia sido propagado por funcionários dessas instituições que não sabiam que estavam infectados.
Mas os problemas de Cuomo foram agravados por relatos de que assessores haviam admitido que o número real de mortes em lares de idosos foi ocultado para evitar ataques por parte de adversários políticos, como Trump.
Diante das críticas e pressões, ele admitiu que foi um erro não fornecer mais rapidamente informações públicas sobre as medidas adotadas pelo governo.
"Isso tudo foi realmente um golpe na imagem do governador", ressalta Schantz.
As decisões do governo em relação ao coronavírus em lares de idosos acabaram virando alvo de investigação federal.
Além disso, vários altos funcionários do setor de saúde pública no Estado pediram demissão recentemente em meio a tensões com Cuomo e divergências em relação à resposta à pandemia e ao plano de vacinação em Nova York.
Assédio sexual
Cuomo já enfrentava essa crise relacionada à pandemia quando começaram a surgir acusações de comportamento inapropriado com mulheres.
Até o fechamento desta reportagem, seis mulheres haviam relatado episódios — que vão desde comentários inoportunos e investidas indesejadas até alegações de assédio sexual.
A primeira a vir a público foi Lindsey Boylan, ex-funcionária do governo estadual que, em dezembro do ano passado, escreveu no Twitter que Cuomo a beijou nos lábios sem seu consentimento e, em determinada ocasião, a convidou para jogar strip poker .
"@NYGovCuomo me assediou sexualmente por anos", tuitou Boylan. "Muitos viram, e só assistiram. Eu nunca conseguia antecipar o que esperar: eu seria cobrada por meu trabalho (que era muito bom) ou assediada pela minha aparência. Ou seria ambos na mesma conversa? Foi assim por anos."
No final de fevereiro, Boylan, que agora concorre a um cargo público em Manhattan, repetiu detalhes sobre o episódio, que teria ocorrido em 2018. O gabinete do governador negou as alegações.
Mas, poucos dias depois, outra ex-assessora, Charlotte Bennett, de 25 anos, disse ao jornal The New York Times e à rede CBS News que, no ano passado, o governador de 63 anos fez várias perguntas sobre sua vida sexual, se ela já havia feito sexo com homens mais velhos e se achava que idade fazia diferença em um relacionamento.
Segundo Bennett, o Cuomo disse que estava solitário e que não se importava de se envolver com uma mulher na faixa dos 20 anos. Ela diz que as perguntas a levaram a concluir que ele "estava tentando dormir comigo" e que relatou tudo ao chefe de gabinete. Ela foi transferida para outro setor e, depois, pediu demissão.
Dois dias após as alegações de Bennett se tornarem públicas, Anna Ruch, que era convidada em um casamento em 2019 no qual Cuomo estava presente, disse que o governador, que ela havia acabado de conhecer, tocou em suas costas nuas, colocou as mãos em suas suas bochechas e perguntou se podia beijá-la.
No fim de semana passada, Ana Liss, de 35 anos, que trabalhou como assessora do governador entre 2013 e 2015, disse ao jornal The Wall Street Journal que Cuomo perguntou se ela tinha namorado, a chamou de querida, tocou em suas costas em uma recepção e, às vezes, beijava sua mão.
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Ambiente 'tóxico'
Também no fim de semana passado uma quinta mulher, Karen Hinton, que foi consultora de Cuomo quando ele era secretário nacional de Habitação, disse ao jornal The Washington Post que, em 2000, ele a chamou para seu quarto de hotel e a abraçou sem seu consentimento.
Hinton disse que se desvencilhou de Cuomo mas que ele a puxou de volta, e ela então saiu do quarto.
Um porta-voz do governo negou a veracidade do episódio e disse que Hinton é "uma conhecida opositora" de Cuomo que está "tentando se aproveitar desse momento para marcar pontos".
Uma sexta alegação veio à tona na terça-feira (9/3). Segundo o jornal The Times Union, de Albany, uma mulher, não identificada, disse que estava na residência oficial a trabalho no ano passado quando o governador botou a mão dentro se sua blusa e a tocou de forma inapropriada e sem seu consentimento.
"Nunca fiz nada disso", disse Cuomo em entrevista coletiva.
O Washington Post também publicou no último fim de semana uma reportagem na qual funcionários, a maioria sob anonimato, relatavam ter sofrido abuso verbal e manipulação emocional e afirmavam que, durante décadas, Cuomo criou um ambiente de trabalho "hostil e tóxico", em que subordinados eram humilhados.
Diante das revelações, a procuradora-geral designou uma equipe independente para investigar as alegações de assédio sexual e a resposta do governo às denúncias feitas por funcionárias como Bennett.
Desculpas
Em entrevista coletiva na semana passada, Cuomo afirmou que nunca tocou ninguém de forma inapropriada, mas se desculpou por comentários que possam ter causado ofensa.
"Agi de uma maneira que fez as pessoas se sentirem desconfortáveis. Não foi intencional. E eu realmente e profundamente peço desculpas por isso", afirmou. "Eu me sinto péssimo por isso e, francamente, envergonhado, e não é fácil dizer isso."
Sobre o episódio relatado por Ruch sobre a festa de casamento, Cuomo disse que, na época, não sabia que estava deixando a convidada desconfortável e que lamenta que ela tenha se sentido assim.
"Meu costume é beijar e abraçar e fazer aquele gesto. Eu entendo que as sensibilidades mudaram e os costumes mudaram. Eu sei disso, e eu vou aprender com isso", afirmou.
Em referência às declarações de Liss, o governador observou: "Eu digo às pessoas no gabinete 'Tudo bem? Como vai? Você tem saído? Está namorando?'. É meu jeito de fazer uma brincadeira amigável".
Em entrevista posterior, no último domingo, Cuomo negou as alegações de Hinton. "Toda mulher tem o direito de vir a público", afirmou. "Mas a verdade também é importante. O que ela disse não é verdade", afirmou o governador, acrescentando que Hinton é "uma antiga adversária política".
Cuomo disse que está cooperando com a investigação comandada por Letitia James e pediu aos nova-iorquinos que esperem o resultado desse processo, que pode levar meses.
Nesta semana, após as alegações da sexta mulher, Cuomo repetiu que não vai mais falar sobre detalhes específicos de nenhum caso enquanto as investigações estiverem em curso e garantiu estar "confiante no resultado".
Pedidos de renúncia
Cuomo disse mais de uma vez que não pretende renunciar, mas os pedidos para que deixe o cargo vêm crescendo à medida que novas alegações vão surgindo.
Na Assembleia estadual, mais de 50 democratas já se manifestaram contra o governador, e deputados republicanos apresentaram resolução para iniciar procedimentos de impeachment.
"Alegações múltipla e verossímeis de assédio sexual e os recentes relatos detalhando a ocultação do número real de mortos por covid-19 em lares de idosos são extremamente preocupantes e deixam claro que o governador Cuomo não é mais o governador certo para Nova York", disse nesta semana o deputado Richard Gottfried, o democrata mais antigo da Assembleia, eleito em 1971.
No domingo (7/3), a líder do Senado estadual, a democrata Andrea Stewart-Cousins, disse que Cuomo deveria renunciar "pelo bem do Estado".
"Nós precisamos governar sem distrações diárias", disse Stewart-Cousins. "O governador Cuomo precisa renunciar."
Na quinta-feira (11/3), o democrata Bill de Blasio, prefeito de Nova York, disse que Cuomo não pode mais servir como governador e deveria renunciar.
"Não é uma, nem duas, nem três, nem quatro, nem cinco. São seis mulheres vindo a público", afirmou o prefeito, em entrevista coletiva.
O presidente Joe Biden e a vice Kamala Harris têm tentado evitar o assunto, sem denunciar nem defender Cuomo.
Futuro político em xeque
Os escândalos envolvendo o governador nova-iorquino representam um desafio para o Partido Democrata e sua imagem de tolerância zero contra assédio sexual e de defesa dos direitos das mulheres e do movimento #MeToo, iniciado em 2017.
O próprio Cuomo várias vezes denunciou acusados de assédio sexual e sancionou leis para proibir assédio sexual no local de trabalho. No passado, nomes nacionais do partido, entre eles Gillibrand e Harris, pediram a renúncia de democratas acusados de assédio sexual, como o senador Al Franken, que deixou o cargo em 2018.
Mas a pressa em condenar e punir Franken rapidamente foi criticada posteriormente, e muitos dizem que o senador deveria ter tido o direito de esperar pela conclusão das investigações a respeito de sua conduta.
Os escândalos também lançam dúvidas sobre o futuro político de Cuomo, que pode concorrer a um quarto mandato em 2022.
Por enquanto, ele ainda parece contar com o apoio da maioria dos nova-iorquinos. Pesquisa da Universidade Quinnipiac na semana passada indicava que 55% dos eleitores do Estado não achavam que o governador deveria renunciar.
Mas a pressão para que renuncie pode aumentar caso novas alegações venham à tona.
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