Japão não adotou medidas drásticas de quarentena, mas já começou a ser criticado
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Japão não adotou medidas drásticas de quarentena, mas já começou a ser criticado


A pandemia de covid-19 , declarada pela OMS no dia 11 de março, causou reações parecidas em boa parte do mundo, com transformações significativas na vida de todas as pessoas, causadas por muitas recomendações e medidas, que estão gerando uma série de reflexos no comportamento humano . Cada povo reage de uma maneira, de acordo com a cultura local e as determinações dos governantes, mas o sentimento de medo e incerteza prevalece em todos os cantos do globo.

O comportamento adotado pelas pessoas nesses tempos de crise pode estar relacionado à memória coletiva adquirida ao longo da história. Na Europa, por exemplo, esse tipo de situação pode ser alinhado ao trauma da Segunda Guerra Mundial , conforme explica Omar Ribeiro Thomaz, professor do departamento de Antropologia da Unicamp.

“Rapidamente, na Itália, as pessoas começam a fazer referência aos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Na Espanha, as pessoas fazem referência à Guerra Civil. Rapidamente, você tem articulações desse universo, que implica mobilização de dados de uma disciplina específica , que é a história, mas que implica a ativação da memória das pessoas, da memória familiar, daquilo que você escutou quando você era pequeno, dos seus avós. Esse tipo de elemento me parece um universo, somado à capacidade de mobilização daquilo que não é Estado, que é a sociedade civil”, explica Thomaz.

A memória que influencia na reação frente à pandemia também pode estar ligada à problemas mais próximos da realidade atual, dentro do campo da saúde pública. É o caso de países africanos que sofreram com epidemias recentes. Em Moçambique, experiências com surtos de cólera e malária podem ajudar o povo a entender mais rápido a necessidade de tomar medidas de precaução.

“A situação do coronavírus impõe um desafio muito grande e muito novo. O que talvez a experiência da malária possa influenciar positivamente no comportamento dos moçambicanos, nesse caso, é quanto à questão da disseminação da informação, e de uma espécie de educação cívica em relação ao problema”, avalia Marílio Wane , pesquisador do Instituto de Investigação Sócio-Cultural do Ministério da Cultura de Moçambique (Arpac).

“Um grande surto de cólera gerou também uma grande conscientização da população sobre esse problema, especialmente da população mais pobre, porque trata-se de uma doença cujo alastramento está ligado às condições de vida dessa parcela da população”, completa.

Apesar dessa influência histórica, Moçambique - que começou a registrar casos há pouco tempo e tem apenas dez confirmações de Covid-19 - terá problemas em garantir o confinamento social, assim como o Brasil e outros países mais pobres. Isso porque essas populações não têm estrutura para se sustentar sem trabalho, ou mesmo para trabalhar de casa.

Distanciamento cultural

A questão da dificuldade em garantir o confinamento social em países de terceiro mundo tem colocado o Japão no centro dos debates como exemplo de como é possível amenizar o contágio sem tirar as pessoas das ruas.

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro , inclusive, publicou nas redes sociais, no último dia 25, um vídeo que mostra uma praça japonesa com grande circulação de pessoas. As imagens foram usadas por Bolsonaro como argumento contra medidas drásticas de isolamento.

De fato, o Japão não decretou quarentena , e tem uma situação considerada sob controle, com pouco mais de 2,5 mil casos confirmados e 63 mortes, segundo balanço da universidade norte-americana Johns Hopkins.

Um dos motivos para isso é o fato de existir entre os japoneses uma cultura estabelecida de distanciamento social , que implica em cuidados rotineiros relacionados à saúde. De qualquer maneira, novos casos começaram a aparecer, e as escolhas do governo japonês começaram a ser questionadas.

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A estudante brasileira Daniely Miwa, de 20 anos, esteve no interior da província de Yamanashi, entre dezembro de 2019 e a segunda semana de março, em um trabalho temporário destinado a universitários, conhecido como “arubaito”. Nesse período, no qual o coronavírus já era realidade no país, Miwa percebeu a precaução natural nas ruas do país.

“As pessoas usavam máscara por variados motivos, desde para ajudar a respirar no frio até evitar espalhar doenças. Usar máscara era muito comum, tanto que eu adotei essa prática muito facilmente, para sair de casa já pegava uma máscara sempre, antes mesmo do coronavírus chegar ao Japão”, relata Miwa.

“Os japoneses costumam sempre estar ‘distantes’ uns dos outros, sem muito contato físico. Acho que são práticas muito enraizadas nessa população, que em situações como essa ajudam a diminuir a propagação da covid-19 . Além disso, os japoneses costumam esperar um pouco a evolução de alguns sintomas, repousam e ficam em casa, esperando passar, se não, ai sim procuram os hospitais. Portanto, os hospitais não costumam ficar abarrotados de gente”, completa.

Resposta ao Estado

Para o antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, a eficácia da reação do Japão, e outros países asiáticos, em conter a disseminação do novo coronavírus está ligada à capacidade que o Estado tem de garantir, até certo ponto, a obediência dos cidadãos.

“Você tem uma disponibilidade muito grande da cidadania dos indivíduos, por diferentes razões. É importante destacar que a China é mais dura, o que a diferencia do contexto japonês, do contexto coreano, e em certa medida de Macau, Hong Kong e Singapura. O fato é que a cidadania responde, por bem ou por mal, com uma adesão muito grande às diretrizes promovidas pelo Estado, ou impostas”, analisa Thomaz.

“Esse é um dado que me parece importante e que diferencia, por exemplo, a forma como as coisas acontecem nos países da Europa ocidental. Na Europa, as instituições que vocalizam o debate, como os parlamentos, estiveram extremamente ativas, a imprensa é extremamente ativa, no sentido de pressionar o Estado, questionar as diretrizes epidemiológicas . Você tem um cidadania que tem como marca característica o debate público, que não se expressa exclusivamente no ambiente privado, no seio das famílias”, completa.

Em artigo publicado pelo El País, o filósofo alemão Byung-Chul Han também aponta que, em países como o Japão, existe uma maior confiança no Estado. No texto, ele articula uma visão crítica ao fechamento de fronteiras adotado na Europa e classifica a medida como ”uma expressão desesperada de soberania”.

Para Han, a proibição da entrada de estrangeiros é “um ato totalmente absurdo levando em consideração o fato de que a Europa é justamente o local ao qual ninguém quer ir”.

Confinamento questionado

Diante deste cenário de fronteiras fechadas e confinamento, diferentes países europeus lidam com a pandemia dentro de suas particularidades. Na Holanda , por exemplo, existe preocupação, mas as medidas adotadas até o momento são bastante flexíveis.

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Holandeses fizeram fila duara comprar maconha antes que coffe shops fechassem por causa do novo coronavírus
Reprodução/Twitter
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As pessoas estão nas ruas praticando esportes e se locomovendo. As restrições são em relação ao comportamento , como a determinação de manter distância de um metro e meio para outras pessoas, com possibilidade de multa como punição. Sair em grupos com mais de três pessoas também não é permitido.

“A Holanda é um país muito interessante nesse sentido. É um dos países mais relaxados e de mente aberta que eu conheço. No geral, eles não se preocupam com nada. Com essa história do coronavírus não foi muito diferente. Até se comentou que a Holanda estava demorando para determinar a quarentena”, conta o brasileiro André Cortellini , UX designer de 26 anos que vive em Amsterdã.

“Amsterdã é uma cidade muito jovem, então tem muita gente que pensa ‘eu não vou morrer mesmo’. Você quase não vê gente com máscara aqui. Então, estou aqui na rua, cruzei com muita gente, e não vi nenhuma máscara”, completa.

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Em Portugal , nem mesmo o fato de fazer divisa com a Espanha, terceiro país com mais casos registrados, impede que algumas pessoas minimizem as orientações para contenção do coronavírus. Moradora de Póvoa de Varzim, cidade a 30 km de Porto, a advogada Monica Corrêa , de 50 anos, constatou que alguns portugueses não demonstram grande preocupação.

“Muitas pessoas resolveram fazer caminhadas pela cidade toda, inclusive no calçadão, e a polícia teve que intervir porque as pessoas andavam em grupos, conversavam. Ou seja, fugiram totalmente da orientação do governo... Tem pessoas que pensam que a doença não existe, que elas não pegam, que é exagero, que a China já desenvolveu uma vacina e que, portanto, nada disso faz mal”, relata Monica.

Desconfiança

Em contrapartida às pessoas que não levam a situação tão a sério, existem aquelas que estão preocupadas demais. Nas ruas de Amsterdã , o medo é visível no olhar das pessoas, conforme notou André ao percorrer seus trajetos diários.

“Quando você duas pessoas se trombando na rua, elas trocam aquele olhar, você vê que tem aquele olhar de medo. Sabe quando você está andando, aí você cruza com alguém? Você bate o olho, mas segue sua vida. Aqui está meio assim: você bate o olho, mas tem alguma coisa por trás, é muito diferente”, afirma.

A desconfiança de que qualquer um pode estar contaminado com o novo coronavírus não é exclusiva das ruas europeias. A mais de 6 mil quilômetros da Holanda, na cidade de Clarington, no Canadá , a coordenadora de treinamento Ana Carolina Mões , de 28 anos, também sentiu essa atmosfera de apreensão.

“Existe um senso de solidariedade no sentido de gente ajudando os familiares, mas eu não vejo muita ajuda com relação aos que não são parte da família. Quando você vai para as lojas tem até o oposto de solidariedade, onde tem uma aura de ‘mistrust’ (desconfiança), ninguém quer ficar perto de ninguém ou falar com ninguém”, conta.

O mesmo clima de receio já causou reações mais violentas em outros contextos. No Brasil, há relatos de profissionais da saúde que foram agredidos em transportes coletivos. O mesmo tipo de agressão ocorreu na Índia , com reações ainda mais exageradas.

Médicos indianos que moram de aluguel chegaram a ser despejados de suas casas pelos proprietários, pressionados por vizinhos que temiam a contaminação com a Covid-19 pelo contato com os profissionais.

Polícia indiana está batendo em pessoas flagradas desrespeitando a quarentena
Reprodução
Polícia indiana está batendo em pessoas flagradas desrespeitando a quarentena


Xenofobia e racismo

Outra consequência desse medo são reações xenofóbicas e racistas em toda a parte do mundo, principalmente em relação a pessoas com traços orientais. No início de março, um estudante de Singapura foi agredido no Reio Unido.

“Essa pandemia coloca uma lente de aumento em problemas que nós já estávamos vivenciando. A questão dos imigrantes, por exemplo ,que chegam em outros países e são maltratados, tem uma questão xenófoba, racista . De nós nos bastamos. A gente vê uma crise humanitária que foi escancarada, a gente já estava vivendo isso”, avalia a professora Ana Lúcia Pardo , pós-doutoranda do Porgrama de Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Além da violência, existem grupos e pessoas que se referem ao coronavírus como “ vírus chinês ”, palavras que saíram mais de uma vez da boca de Donald Trump. No último dia 24, o presidente norte-americano se retratou e disse que não usaria mais o termo, após uma conversa com Xi Jinping, presidente da China.

“A xenofobia pode se expressar em qualquer lugar, mas ela não vai se expressar da mesma maneira. Nesse contexto de relativa falta de controle por parte de instituições públicas ou cívicas, a gente pode ter processos acusatórios, e a epidemia sempre aparece simbolicamente, e praticamente, como algo que vem de fora”, explica o antropólogo Omar Ribeiro Thomaz.

Solidariedade

O clima de desconfiança, no entanto, não leva a uma total falta de solidariedade . Na Holanda, existe um sistema de cadastro para pessoas mais jovens ajudarem idosos.

“Está tendo uma planilha de Excel em que você preenche seus dados se você quiser ajudar alguém na sua vizinhança. Tem muitos senhores que moram sozinhos e não têm condições, precisam ir ao supermercado fazer compras, se não morrem de fome. Tem essa planilha, e alguns grupos de WhatsApp. Eu até me cadastrei semana passada. Se quiser ajudar algum senhor, você vai fazer uma compra pra eles, aí você contata eles”, conta André Cortellini.

Em Portugal, Monica Corrêa também testemunhou e participou de esforços pelo bem da coletividade. Entre os exemplos estão idosas que se dispõe a ajudar e estão costurando máscaras para profissionais de saúde.  

“Há um senso comum de ajudar quem precisar, muitas pessoas se dispõe a ir a mercado, fazer compras para idosos, para quem não possa se desolocar. Se alguém não tiver como comprar alimento há muitos grupos de solidariedade. O próprio governo e associações têm disponibilizado alimento para essas pessoas, por isso a solidariedade existe sim”, afirma a advogada.

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