Após um ano de aulas remotas e ensino praticamente paralisado na rede pública por conta da pandemia do novo coronavírus (Sars-cov-2), o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) anunciou, na semana passada, o novo modelo de aplicação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). O iG conversou com especialistas e estudantes que já realizaram provas seriadas para analisar a proposta
O presidente do Inep, Alexandre Lopes, anunciou em entrevista coletiva com o ministro da Educação, Milton Ribeiro, a proposta do Enem Seriado, que deverá ser aplicado já em 2021 a partir da implementação do novo Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica).
O anúncio foi feito em meio à discussão sobre o retorno das aulas presenciais e os impactos da pandemia do novo coronavírus
(Sars-cov-2) na educação após um ano de aulas paralisadas e ensino remoto sem contemplar todos os alunos.
Será opcional em 2021
O Enem Seriado reformula o modelo de vestibular tradicional aplicado no último ano do ensino médio e passa a incorporar as provas do Saeb - utilizadas para avaliar a qualidade do ensino -, que serão realizadas nos três anos do ensino médio para gerar um coeficiente de aproveitamento do aluno e que poderá ser utilizado para disputar as vagas do Prouni e do Sisu. Segundo o Inep, o Enem Seriado não deve substituir a prova tradicional e será opcional após o primeiro ano de testes, em 2021.
O Inep não é vanguardista neste campo, a Universidade de Brasília (UNB) adota há anos o PAS (Programa de Avaliação Seriada), que permite aos alunos do ensino médio prestarem uma prova ao final de cada ano para compor a média de aproveitamento e assim ingressarem na universidade sem recorrer ao exame convencional, que reúne todos os conhecimentos adquiridos nos três anos. A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) também garante esta opção aos seus vestibulando.
O que dizem os estudantes
O Henrique de Oliveira Ferreira, 20 anos, é estudante do quinto período de Relações Internacionais na UNB, ingressou na universidade por meio do PAS e afirma que " é uma prova bem inteligente ".
"Foi uma experiencia muito boa. Por mais difícil que ela seja, eu acho que aprendi bastante. A maneira como o conteúdo da prova é passado permite que a gente aprenda, até porque trabalha questões interdisciplinares. Acho que responder coisas diferentes em momentos diferentes dá uma suavizada no conteúdo de uma prova no terceiro ano que teria tudo. Acho que é uma vantagem no sentido da matéria, mas cobra mais responsabilidade da gente", diz.
O universitário revela que as vantagens da prova seriada conflitam com algumas desvantagens que envolvem o período de preparação e as decisões importantes a serem tomadas durante a adolescência.
Vantagens e desvantagens
"Fazer uma prova todos os anos do ensino médio é meio complicado, porque a gente acaba tendo que se dedicar todos os anos para uma coisa que você está planejando. Quem é que sabe qual curso vai fazer já no primeiro ano do ensino médio? Eu fiz a prova da UNB só para garantir, mas eu não tinha certeza se eu ia querer ir. Uma das desvantagens é ter que saber já no primeiro ano que você vai ter que se preocupar com o vestibular", explica. No PAS, os alunos escolhem o curso após concluírem a terceira prova.
O estudante da UNB também realizou o Enem durante o período do ensino médio e defende que é uma prova que " tem muito o que mudar ainda ", por conta da sua estrutura de perguntas e tempo, que segundo ele, não faz com que os jovens estudem e aprendam durante a prova.
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Para Henrique, a implementação da prova seriada já em 2021 pode prejudicar os alunos que saem do 9º ano e já no final do primeiro ano do ensino médio terão que realizar o Saeb de maneira censitária , conforme divulgou o Inep.
"Durante a pandemia todo mundo vai sair prejudicado em ensino e as pessoas que estão fazendo o ensino médio são as mais prejudicadas , principalmente na rede pública", complementa.
Mais uma oportunidade
Segundo Alexandre Lopes, presidente do Inep,"os jovens brasileiros vão ter mais uma oportunidade de ingressar no ensino superior. Além do Enem [tradicional], vamos apresentar no ano que vem o Enem seriado".
O doutor em Educação e vice-presidente da Associação Nacional de Educação Básica Híbrida, Renato Casagrande, 55 anos, reitera os argumentos defendidos pelo presidente do Inep e pelo estudante da UNB.
"Concentrar todos os conteúdos e objetos de aprendizagem numa única prova já foi provado e testado que é uma avaliação insuficiente e que pode penalizar os alunos . Ao ampliarmos a possibilidade da avaliação seriada, além de podermos aprofundar a avaliação , já que teremos mais de uma possibilidade de realizá-la, estaremos também permitindo ao aluno uma adaptação e um preparo melhor para cada uma das fases.
Acredito que o processo seletivo seriado poderá ajudar os alunos , os professores e as escolas a conhecerem melhor suas dificuldades durante o percurso e não só no final dele", analisa.
Mais justo
Casagrande defende que "o coeficiente produzido por provas seriadas tende a ser mais justo , porque permite avaliar melhor cada etapa de ensino", mas compreende que alunos de escolas públicas que optarem pelo exame seriado podem ser prejudicados pelas desigualdades do ensino , acentuadas pela pandemia do novo coronavírus.
"A pandemia tem ampliado as discrepâncias entre os alunos que têm mais e os que têm menos, entre alunos que estudam em escola pública e privada ou ainda alunos que têm acesso à internet e novas tecnologias e alunos que não têm ", afirma Casagrande.
Mas, e a pandemia?
Nesse sentido, Tatiane Ribeiro, 31 anos, coordenadora da Rede de cursinhos comunitários Emancipa no Rio Grande do Norte, argumenta que independente do modelo a relização do exame em 2021, considerando os efeitos da pandemia, "significa ignorar completamente a realidade dos estudantes mais pobres ".
Para Tatiane, a oferta opcional do Enem Seriado pode favorecer estudantes de escolas privadas e prejudicar os alunos das escolas públicas que optem por qualquer um dos dois modelos.
"Esse modelo me parece contemplar mais a realidade dos estudantes em escolas privadas do que alunos da rede pública. É de conhecimento geral as imensas e diversas dificuldades que toda a rede pública de ensino enfrenta, desde questões básicas de infraestrutura a temas mais delicados de cunho social em relação às desigualdades. Estamos falando de alunos que enfrentam problemas básicos dentro das escolas . Não li sobre qualquer política voltada à melhoria dessas estruturas", diz.
"Pensar num novo modelo de avaliação quando ainda temos precariedades na maior parte da rede pública me parece criar novos problemas e não resolver os primeiros", complementa.
Mudanças no perfil do Saeb
A educadora popular defende a realização de uma avaliação contínua, que poderia ser usada, inclusíve, para destinar mais investimentos em educação, reavaliar os metódos das escolas públicas e reorganizar as relações com as comunidades, sendo estas algumas das funções do Saeb, que podem ser colocadas de lado no novo formato.
A ideia do governo federal de incorporar o Saeb ao vestibular muda completamente a premissa da avaliação, que hoje é aplicado para os alunos do 2º, 5º e 9º ano do ensino fundamental, além do 3º ano do ensino médio, com o intuito de avaliar apenas as áreas de português e matemática.
O Saeb também é um dos métodos avaliativos utilizados para calcular o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), um indicador que mostra a qualidade de ensino da educação brasileira
A aplicação em mais séries do ensino médio, com a função de ser um elemento de disputa para ingressar na universidade, pode representar problemas na função avaliativa do exame. Além disso, o novo Saeb irá avaliar todas as áreas de conhecimento mudando completamente o perfil e a estrutura necessária para aplicação da prova é realizada atualmente.
"Sabemos que não é essa a vontade do governo nesse momento. O mais provável é que esse seja um modelo que, da forma como será implementado, deve beneficiar mais as escolas privadas e cursinhos caros do que estudantes de escola pública e cursinhos populares. Enquanto não houver diálogo do modelo do Enem com as escolas públicas e seus educadores, não importa qual o modelo, ele seguirá sendo excludente ", defende a educadora popular.