Apesar de atuar como voluntário em operações de resgate há 33 anos, Yossi Landau
não estava preparado – quem estaria? – para enfrentar o saldo macabro da invasão do Hamas ao sul de Israel no dia 7 de outubro.
Ele é comandante da Divisão Sul do Zaka, entidade criada em 1995 para atuar na busca e resgate de vítimas de todos os tipos de tragédias. Suas equipes estão sempre entre os primeiros a chegar onde ninguém quer estar: áreas atingidas por desastres naturais como terremotos ou furacões, regiões em que ocorreram incêndios de grandes proporções ou acidentes graves – e, no caso de Israel,
áreas onde foram realizados ataques terroristas.
Os voluntários do Zaka, em sua maioria homens ultraortodoxos que realizam tarefas terríveis e necessárias como recolher corpos ou partes deles, agem dentro e fora de Israel. Em anos recentes, eles atuaram após a erupção do vulcão Fuego no Guatemala em junho de 2018 e, no mesmo ano, durante a epidemia de cólera no Zâmbia; em 2017, participaram do resgate de vítimas de um terremoto no México e do furacão Maria em Porto Rico, ambos em 2017, além do terremoto no Nepal e no Taiti em 2015. No Brasil, cooperaram no resgate das vítimas do rompimento da barragem de Brumadinho em Minas Gerais, em 2019, entre muitos outros exemplos. Segundo o site da organização, sua atividade principal é “oferecer resposta a desastres assegurando a dignidade das vítimas”.
Assim que foi contatado pela Polícia israelense naquela manhã, Landau assumiu a coordenação de um grupo de 55 voluntários que trabalharam ininterruptamente do dia 7 até o fim da tarde do dia 12 de outubro. Nesse período, dormiu apenas 5 horas e perdeu 9 quilos.
Segundo suas palavras, ele nunca mais voltará a ser quem era antes de 7.10. Essa é sua história.
Como você ficou sabendo do que ocorria no sul no dia 7.10?
Recebi o telefonema da Polícia logo após as 6h30, quando o Hamas começou a lançar mísseis contra Israel. Ainda não tínhamos ideia do que estaria por vir e apenas me pediram prontidão. Algum tempo depois, solicitaram que eu me dirigisse a Sderot, uma das cidades invadidas.
[Sderot, cidade com 33 mil habitantes, está localizada a 12 quilômetros da Faixa de Gaza. O confronto com os invasores se estendeu por 25 horas e deixou 30 mortos]
Estranhei um pouco quando pediram que me dirigisse até lá com o caminhão do Zaka. Achei que era em função do fato de várias ambulâncias terem sido destruídas pelos terroristas. Na estrada, perto de Sderot, havia sido montado um hospital de campanha. O exército nos parou antes de chegarmos ao nosso destino e, após eu apresentar minhas credenciais, me pediram que viajasse com cuidado. Poucos metros depois, entendi o porquê: havia corpos por todos os lados. Um percurso que nos tomaria 7 ou 8 minutos levou mais de meia hora.
Você já havia trabalhado em uma área de combate?
Não, foi a primeira vez. Além disso, nós estamos acostumados a atuar em áreas sob bombardeio e conhecemos o som de mísseis. Dessa vez, ouvimos também tiros de metralhadora, de granadas, de RPGs.
Qual foi a primeira coisa que vocês viram e que não conseguem esquecer?
Duas pilhas de corpos de crianças de 13 a 18 anos, todas com as mãos amarradas às costas. Elas foram queimadas vivas. Desde então, é difícil olhar no rosto de crianças, inclusive de meus próprios netos. O mesmo está acontecendo com outros voluntários do Zaka. Muitos deles entraram em colapso no próprio dia 7 (outros depois) e tiveram que ser internados.
O que vocês fizeram?
Começamos recolhendo centenas de corpos da estrada, sempre sob o ataque de mísseis. Mas não tínhamos nem como nos proteger nos abrigos antiaéreos, que são muitos naquela área: eles estavam lotados de mortos. Tivemos que deixar de lado nossos próprios protocolos. Sempre tratamos os corpos, que são sagrados para o judaísmo, com enorme respeito. Assim, quando os recolhemos em enormes sacos especiais, os acomodamos lado a lado. Dessa vez, não havia como – tamanha era a quantidade de mortos que tivemos que formar camadas sobre camadas de corpos dentro do caminhão. É uma cena que a mente nem ao menos consegue processar. Eu sabia que não poderia me sensibilizar com o que via. Assim, me desconectei. Simplesmente atuei.
Vocês também estiveram na área do Festival Nova?
Sim. A polícia nos permitiu trabalhar ali durante poucas horas, no meio da madrugada, porque havia o temor de um novo ataque. Em um curto período, recolhemos, só ali, 207 corpos nas primeiras três horas. [O saldo macabro do dia 7.10 foi de mais de 1,2 mil mortos e mais de 5,5 mil feridos]. Muitos me perguntaram como eu me senti ao trabalhar em uma área onde haviam só jovens não religiosos, que provavelmente usaram drogas ou álcool etc., e que não estavam vestidos com discrição, como determina nosso livro sagrado, a Torá. Nunca levamos esse tipo de coisa em consideração – vidas humanas são vidas humanas. E mais: na minha opinião, estes jovens do Nova são verdadeiros anjos que perderam suas vidas para salvar a de milhares de outros israelenses. [Pelos mapas encontrados nos corpos dos terroristas, o Exército concluiu que o plano do Hamas era chegar até a área central de Israel]. Por causa da enorme concentração de pessoas ali, centenas de terroristas permaneceram na área por horas e horas, retardando seu avanço.
Como foi o trabalho de vocês nas comunidades agrícolas (kibbutzim), em que os civis foram assassinados dentro de suas casas?
Depois de recolhermos corpos pela estrada e na área do festival, achamos que já tínhamos passado pelo pior. Mas, daí, nos mandaram seguir para o kibbutz Beeri. [A comunidade agrícola de Beeri foi uma das mais atingidas na invasão: 90 pessoas foram mortas e 37 sequestradas.] Entramos de casa em casa e vimos como famílias inteiras foram atacadas. Havia sangue por todos os lados e os corpos estavam dilacerados. Faltavam partes. Sobre todas as mesas havia restos da refeição da noite anterior ou do café da manhã daquele dia. Os corpos falavam conosco, nos contavam sua história, e foi claro ver que as pessoas – homens, mulheres, crianças, idosos – foram torturados enquanto os terroristas comiam calmamente. Pais foram torturados em frente aos seus filhos e vice-versa. Em uma das casas, vi a cena mais trágica: assim que entrei, notei a enorme, realmente enorme, poça de sangue no chão. Essa não é uma cena usual. Para realizar nosso trabalho, normalmente nos dividimos em equipes de seis pessoas – mas, devido ao que imaginei que enfrentaríamos ali, chamei 12 voluntários. À porta, perguntei se alguém preferia não entrar – todos os 12 pediram para permanecer fora, e isso mostra o nível de barbárie do ataque. Tive que lembrá-los que não temos essa opção. Assim, entramos todos. Antes de avançarmos, fizemos um círculo e nos demos as mãos. Começamos a cantar músicas de fé pedindo a Deus coragem para executar nossa tarefa. Isso nos ajudou. Eu disse para todos: é isso o que os terroristas querem, nos paralisar. Não podemos ceder. Nos dias seguintes, tivemos que voltar a essas casas para limpar todo o sangue, pois é isso que determina a lei judaica, e também para deixá-las limpas para aqueles que voltassem. Não poderia permitir que ninguém mais testemunhasse tamanho horror. Meus colegas me perguntaram, com razão: “Quem vai voltar para cá? A família inteira foi assassinada!”
Como vocês se sentiram após esses dias de trabalho?
Muitos dos voluntários são bastante veteranos. Eu mesmo atuo no Zaka há mais de três décadas. Mas nenhum de nós estava preparado para o que vimos. Muitos não conseguem mais comer ou dormir e estão sensíveis a diferentes odores. Outros muitos não conseguiram nem voltar às suas rotinas, ao seu trabalho: o Zaka está fornecendo cupons de alimentação para que pelo menos não lhes falte comida à mesa. Contratamos uma agência de apoio psicológico por conta própria. Não havia tempo para esperar pela liberação de verba do governo.
O Zaka atende exclusivamente a judeus?
Não, não fazemos diferenciação. Dedicamo-nos a todos: cristãos, drusos, beduínos e muçulmanos, jovens e idosos, homens e mulheres, religiosos e seculares. Prestamos assistência a todos os seres humanos.
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