176 dias! Esse foi o tempo transcorrido entre o dia 27 de abril, data da instalação da CPI encarregada de investigar as ações e as omissões do governo durante a pandemia da Covid-19, e a leitura do relatório do senador Renan Calheiros (MDB/AL), na quarta-feira da semana passada.
Ao longo desses quase seis meses, o governo esteve sob bombardeio constante e o presidente Jair Bolsonaro, no centro de críticas que o trataram como um sanguinário cruel, que pareceu ter agido de propósito para causar as mais de 600 mil vítimas da Covid-19 registradas até agora.
Não é o caso de livrar Bolsonaro de suas responsabilidades — que, de fato, são muitas. Nem de ignorar que, em razão de sua inépcia ou de sua insistência negacionista, ele levou seu governo a tomar decisões equivocadas, que dificultaram ou retardaram o combate à pandemia.
Mas, a despeito de tudo isso e apesar das falhas cometidas por um governo que a cada dia deixa para trás um pouco de seu prestígio, os desdobramentos da CPI, ao invés de enfraquecer, poderão acabar por fortalecer a posição do presidente.
Por quê? Ora, às vezes, uma acusação mais pesada, que passa do limite e que inclui pontos subjetivos e de difícil comprovação, acaba se tornando mais fácil de ser rebatida do que uma peça mais bem dosada, precisa e, portanto, irrefutável.
A insistência em elevar o tom de voz ao se referir a Bolsonaro e às ações de seu governo pode até ter atraído os holofotes para os senadores que integraram a linha de frente da CPI. Mas custaram ao país uma oportunidade de ouro para se corrigir os rumos e adotar ações mais eficazes no combate a uma tragédia que ainda não chegou ao fim e que ainda matará muitos brasileiros antes de ir embora definitivamente.
Descontadas as duas semanas em que os trabalhos foram interrompidos pelo recesso parlamentar do meio do ano (afinal, ninguém é de ferro!), a Comissão presidida por Omar Aziz (PSD/AM) e que tinha Randolfe Rodrigues (REDE/AP) como vice, agiu como se não houvesse outro assunto para tratar no país.
Mas, a despeito do esforço para se tratar como novidades acusações que já eram conhecidas muito antes de se pensar em CPI, a impressão que ficou muitas vezes foi a de que as investigações, por mais que parecessem avançar, não saíram do lugar. E que todos os depoimentos e interrogatórios feitos durante os trabalhos tinham como única finalidade cumprir um roteiro que estava traçado desde o início e, no final, incriminar Bolsonaro e de seus aliados mais próximos.
CONSTRANGIMENTO AO GOVERNO
Não deu outra. O relatório da CPI, que tem 1.179 páginas, pede o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro, de três de seus filhos e de outras 63 pessoas e duas empresas por um total de 22 crimes diferentes. Apenas a Bolsonaro foram imputados nove delitos diferentes.
São eles: crime de epidemia com resultado de morte; infração a medidas sanitárias preventivas; incitação ao crime; emprego irregular de verba pública; falsidade de documentos particulares, charlatanismo; prevaricação; e crime contra a humanidade. Com sua habitual loquacidade, o senador Randolfe calculou que as penas somadas por todos esses crimes podem render a Bolsonaro uma pena de 78 anos de prisão.
A dose, evidentemente, é exagerada e a possibilidade concreta de o presidente passar um único dia atrás das grades por causa dos delitos que lhe foram imputados por Renan Calheiros é a mesma de ver cair neve no Planalto Central.
Do Senado, o calhamaço produzido pelo relator da CPI seguirá para o Ministério Público e só seguirá adiante se o Procurador Geral da República, Augusto Aras entender que isso deve acontecer — outra hipótese que, convenhamos, não deverá se consumar.
O próprio ministro Luís Roberto Barroso, do STF, que não esconde sua falta de sintonia com Bolsonaro, já disse a mais de um interlocutor que a imputação de tantos crimes ao presidente é uma decisão política, mas seu desdobramento jurídico é uma possibilidade remota.
É evidente que os integrantes da CPI — todos experientes e conhecedores de como esse tipo de coisa funciona em Brasília — sabem disso. O objetivo deles, provavelmente, nunca foi identificar os erros nem corrigir as ações federais nas medidas de combate à pandemia. A ideia era e continua sendo apenas constranger e manter o governo sob ataque e, assim, pressionar Bolsonaro contra a parede.
O problema é que, ao tentar sufocar o presidente e seus aliados sob uma pilha tão pesada de acusações, a CPI pode ter dado a ele uma oportunidade de ouro de sair dessa história mais forte do que entrou. Ou seja, no limite, o tiro pode acabar atingido o pé de quem puxou o gatilho.
Não é o caso de se afirmar que isso acontecerá e muito menos desejar que aconteça. Bolsonaro cometeu erros graves na condução dos trabalhos relacionados com a pandemia. Alguns dos erros são tão gritantes que até dispensariam uma investigação mais prolongada para serem apontados. Quer um exemplo? Vamos a ele.
ACUSAÇÃO DILUÍDA
A recusa em aderir logo de início a um programa massivo de vacinação talvez seja o mais grave dos equívocos de Brasília. O erro foi comprovado ainda no início dos trabalhos da CPI, pelo depoimento e pelos documentos apresentados pelo ex-diretor da Pfizer no Brasil, Carlos Murillo.
De acordo com as informações passadas pelo executivo, o Brasil poderia ter largado na frente da maioria dos países do mundo, iniciado um programa de imunização em massa ainda no ano passado e, assim, salvado milhares de vidas.
Ao invés de concentrar suas baterias numa acusação dessa gravidade, os senadores da CPI optaram por continuar alimentando o braseiro aceso para chamuscar a imagem do governo — ao mesmo tempo em que tentaram blindar os governadores aliados, que também cometeram erros e não foram investigados. Isso tirou a força da CPI e deixou a impressão de que, na política brasileira, as alianças falam mais alto do que as responsabilidades.
Tudo bem! Toda e qualquer investigação conduzida pelo parlamento só produz efeitos se a correlação de forças políticas do momento permitir ações mais extremas. Foi assim na CPI que custou o mandato do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
O mesmo aconteceu na que investigou a chamada Máfia dos Anões do Orçamento, em 1993, e na que tirou a ex-presidente Dilma Rousseff do poder, em 2016.
A questão é que nenhuma dessas CPIs imputou aos denunciados uma lista tão extensa de crimes quando a que foi atirada sobre Bolsonaro no relatório de Calheiros. A impressão que fica é que, diante da dificuldade de se comprovar um crime que tivesse força suficiente para reunir a opinião pública contra Bolsonaro, o relator resolveu ampliar o leque de acusações na tentativa de encontrar um que fosse capaz de causar uma ferida de morte no governo de Bolsonaro.
Se conseguir, terá alcançado seu objetivo. Se não conseguir, poderá, ao contrário de ver o governo sangrar, fortalecer Bolsonaro e dar a ele argumentos para o contra-ataque.