“Vi, após atentados, pessoas sem braços, pessoas sem pernas e outras com as caras queimadas.” Quando olhamos para o Oriente Médio, por vezes, temos a sensação que o inferno é na terra e que o conflito não tem fim. É impiedoso mas indecifrável. Como é que se chegou até aqui? Estaremos mesmo a beira da derrota do terrorismo? Proponho explorar a situação atual da Síria à luz de três olhares essenciais.
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Histórico
A identidade árabe encontra a sua maior influência bem enraizada numa das mais longas dinastias da história, o Império Turco Otomano. Estes 600 anos moldaram a política, religião, e forma de vida árabes. Contudo, a derrota na Primeira Guerra Mundial marcou o fim do Império. Vários historiadores consideram este um dos momentos chave na história árabe: o momento em que alguém precipitadamente pega um lápis e uma régua e divide o Império em colônias para os Aliados. Hoje, três gerações depois, a amarga disputa para retificar essas fronteiras ainda está no epicentro dos conflitos regionais.
Entre 1945 e 1970 a Síria viveu a ascensão e queda de vários regimes, foi alvo de golpes de Estado e esteve sob controle militar. A confusão, a desconfiança e o terror dominaram este período. A determinada altura, até foi apontado como ministro da defesa um espião israelita infiltrado — coisas que aprendemos na Netflix. Na origem desta instabilidade política esteve a criação de uma desvirtuada noção de nacionalismo sírio, ‘o árabe sunita’, que afastou as minorias do debate político e as radicalizou.
Hafez al-Assad sobe ao poder em 1970 tomando partido do seu destacamento militar. Em 2000, a sua morte assinalou a pacífica passagem de poder para o seu filho, Bashar al-Assad. Este declara inicialmente que será um líder diferente, conciliador e moderno, e que irá se legitimar por meio de eleições. No entanto, e para grande surpresa, rapidamente o regime regressou a um sistema autoritário. Num ambiente regional tenso marcado pela Primavera Árabe, falhas políticas e sociais desencadeiam protestos nos quais os manifestantes exigiam o afastamento do presidente. Assad responde com força mas a repartição dos rebeldes em grupos hostis aumenta a incapacidade de controle da situação.
Na tentativa de enfraquecer o poder de Assad, os rebeldes tomaram controle de algumas regiões e de setores estratégicos para o país, nomeadamente o petrolífero. Dividem-se em dois ramos, ainda que a questão seja mais complexa que isto: os que lutam pela sua pátria e que procuram depor o regime de Assad e os jihadistas, que procuram criar uma dar ul-Islam, um novo Estado. O projeto destes últimos é ambicioso e radical, estendendo-se para além da Síria e do mundo árabe. Os dois grupos jihadistas mais perigosos na Síria são os Hayat Tahrir Al-Sham - forças ex-Al-Nusra, do grupo Al-Qaeda dedicadas primariamente atacar o Ocidente - e o mais que conhecido ISIS - Estado Islâmico do Iraque e de al-Sham que tem como principal objetivo estabelecer um califado e implementar a Lei Sharia, enraizada no Islã do século VIII.
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Terrorista
Acredito que todos suspiramos de alívio ao acordar com a notícia de que o líder da mais temida organização terrorista estava morto. Realmente a morte de Abu Bakr al-Baghdadi, fundador e líder do autoproclamado Estado Islâmico , é um golpe esmagador para a já enfraquecida organização. Mas verdade seja dita, a morte de Baghdadi deu pouco alívio aos sobreviventes. O deslocamento, desalojamento, a morte e a destruição continuarão a atrapalhar qualquer um nos próximos anos. A grande questão agora é se a sua morte jogará ou não, a favor da Al-Qaeda . As duas organizações partilham ideologias muito semelhantes — tendo em conta que o ISIS é o resultado de um rebranding, do que foi um franchise da Al-Qaeda no Iraque e que em 2014 passou a ser um grupo independente. Este afastamento foi em larga medida o fruto de um confronto de egos entre os seus líderes, mas esta rivalidade deve evaporar com a morte de Baghdadi. O vácuo político proporciona a Al-Qaeda a oportunidade ideal para reunir as forças.
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Como consequência da morte de Baghdadi, as dinâmicas políticas podem se alterar ou até diminuir temporariamente. Quer no caso de Bin Laden, quer no caso de Baghdadi, as suas mortes podem ter provocado uma pausa, um momento de lucidez e terror, de compreensão de que ninguém é invulnerável e de que ninguém é invencível. Porém, naquela que é a luta eterna dos jihads, um momento como este é curto, e não passa de uma inconveniência.
A morte de Osama bin Laden não trouxe o fim do terrorismo e a morte de Baghdadi também não o trará. Atenção, o jihadismo não é um fruto de anos de intervenção americana ou o resultado de um choque de civilizações. Desde do momento que o mundo árabe foi dividido em colônias que existem forças que vêem a violência como necessária para erradicar os obstáculos à restauração do governo de Deus na Terra e à defesa da comunidade muçulmana. O jihadismo não é um fenômeno recente, e assim sendo, nem o ISIS é o primeiro nem será o último grupo insurgente a promover uma visão apocalíptica do mundo.
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Khalil Hamza
Enquanto que a morte de Baghdadi foi possivelmente um dos eventos mais noticiados dos últimos tempos, há outras caras, outras forças desta guerra que embora representem milhões de pessoas, não são tão noticiadas. Ninguém quer ler a mesma notícia vezes sem conta. Mas, e se se tratar de um movimento, um evento sem fim? Possivelmente também não. As Nações Unidas identificaram em 2016, 13.5 milhões de refugiados somente da Síria. Eu vou contar a história de um.
Khalil Hamza com quinze anos deixou para atrás toda a sua vida em março de 2013. Até esse dia estudou e trabalhou. Viu pessoas morrerem na sua praça preferida. Viu, após atentados, pessoas sem braços, pessoas sem pernas e outras com as caras queimadas. Está grato pela sua família estar bem e ter conseguido chegar à Grécia. Hoje Khalil tem vinte e um anos, e viveu os últimos sete anos entre campos. Passou primeiro por Samos e descreve as condições como ‘extremamente más’. Explica que havia ressentimento, ameaças e racismo por todo o lado e entre todas as religiões e raças. Hoje no Campo Eleonas em Atenas, estuda mas não terá um diploma. Ainda não tem passaporte nem identificação e por esse motivo não pode sair de Atenas. Quanto ao seu futuro Khalil quer graduar-se e receber um diploma que o comprove, e quer trabalhar com qualquer coisa, desde que possa ajudar a sua família. É tímido, mas doce. Durante a entrevista procurou sempre responder rapidamente antes que as lágrimas caíssem, e com alguma ansiedade de acabar, perguntava imediatamente pela próxima pergunta.
Khalil passou pelo inferno e escapou com vida e com família. Na verdade, esta é uma história de sucesso. Passados sete anos continua no ponto zero, sem nada, angustiado por recomeçar a viver. Sonha em ir para a Holanda e em poder fazer aquilo que gosta, costura.
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Por Fim
Por fim, queria reforçar que apesar de este conflito ser por vezes descartado, não deveria. A Guerra Civil da Síria tem dominado a geopolítica, tem colocado frente a frente e testado alguns dos mais poderosos do mundo, como os Estados Unidos, o Irã a Rússia e a Turquia. Este conflito marcará pelo menos uma década de relações internacionais, correntes de filosofia política e a vida de milhões de envolvidos.