Há algum tempo já sou uma tetra que faz o próprio caminho. Desde 2016 passei a ir trabalhar em Brasília com uma cadeira de rodas motorizada. Diferente de ter minha cadeira empurrada por alguém, uma realidade que vivi durante 21 anos, quando não tinha ainda movimento algum de braço, ganhei autonomia para conduzir minha cadeira.

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A mudança, que para muita gente pareceu repentina, é fruto de um trabalho de longa data com o meu braço. Muita fisioterapia, exercícios simples, constantes e repetitivos, que eu nunca deixei de praticar todos os dias desde que quebrei o pescoço, além de muita eletroestimulação . E é sobre a minha inabalável fé nesses choques que quero falar com vocês.

Embora muitos profissionais não prescrevam a eletroestimulação, por acreditarem que quando ela não é funcional, ela não tem razão de ser, para mim, ela sempre foi um remédio que acreditei.

Mara Gabrilli relata sua experiência
Arquivo pessoal
Mara Gabrilli relata sua experiência

Tempos atrás, ajudei a promover um estudo em que cadeirantes foram submetidos à ausência total de contração muscular em todo o corpo. Nesse experimento, detectou-se que alguns aminoácidos, ligados ao sistema imunológico, só eram liberados mediante a contração muscular. Ou seja, a pessoa que não contrai a musculatura tem muito mais probabilidade de desenvolver infecções e ficar doente. Por aí já podemos derrubar a tese de que a eletroestimulação só tem serventia se for funcional.

Os choques provocam uma contração muscular mesmo que o percurso entre o meu cérebro e músculo ainda não consigam fazer esse caminho sozinhos. E foi por insistir na eletroestimulação, por mais de vinte anos, que consegui, há alguns anos, ter um esboço de contração no meu bíceps esquerdo, que aos poucos foi se fortalecendo e expandindo para o músculo do meu antebraço, permitindo um movimento sútil de braço, mas que fez toda a diferença na minha vida.

Tudo isso só foi possível porque a eletroestimulação me trouxe também muito preparo físico. Preparo de tônus muscular, de circulação sanguínea, de respiração, de conservação de massa óssea, força, resistência e consciência corporal. Aliás, foi esse preparo físico, que nunca abri mão de ter, que me levou, inclusive, a me tornar voluntária de pesquisas no Miami Project, maior centro de pesquisas sobre a cura de paralisias do mundo, localizado na Universidade de Miami, nos EUA.

O convite surgiu há alguns anos, em uma de minhas visitas ao local, quando fiz um exame para ver como estava a minha lesão medular, que desde o acidente sempre foi considerada completa, ou seja, quando a secção da medula é total, não restando fibras nervosas saudáveis.

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Na ocasião, para minha surpresa, a médica virou e disse: “Very, very incomplete”. No ano seguinte eu já voltava ao Miami Project pilotando a minha própria cadeira de rodas com o braço esquerdo.

Eles ficaram tão impressionados com a minha recuperação de movimentos, depois de mais de duas décadas, que acabaram me chamando para ser “cobaia”.

Nesse início de ano, estou participando, pela segunda vez, de um protocolo desenvolvido lá. Dessa vez, o tratamento experimental, criado originalmente para ser realizado em três meses, foi adaptado para que eu o cumprisse em três semanas. Nele, foi usado simultaneamente as técnicas de estimulação magnética transcraniana e estimulação elétrica. Ou seja, mais uma vez, choques.

Em 2017, eu já havia participado de um protocolo parecido em que se utilizava as mesmas técnicas. Na ocasião, o objetivo era estimular os movimentos do braço esquerdo. Para isso, eu tomava 180 choques no córtex motor através de estimulação magnética, ao mesmo tempo em que tomava choques por estímulo elétrico do pescoço para cima. Ou seja, os choques eram direcionados na parte de cima e de baixo da minha lesão e acionados simultaneamente, como uma forma do estímulo elétrico potencializar o magnético. Esse caminho era feito até chegar ao meu bíceps esquerdo. Nesse protocolo a estimulação elétrica incidia apenas nos nervos periféricos.

A diferença desse protocolo de agora é que os choques são disparados diretamente no local da minha lesão, na nuca, e o objetivo é atingir o sistema nervoso central . Diferente de alcançar apenas um braço ou um grupo muscular, a ideia é chegar aos dois braços por inteiro.

Quem sabe não volto uma tetra capaz de lutar boxe?!

Regatar esse movimento do meu braço, por mais sútil que ele pareça, envolveu uma série de fatores. Mas o principal foi nunca ter aceitado uma musculatura atrofiada pelo fato de ser tetra.

Estou otimista que os resultados refletidos em meu corpo servirão de base para ajudar a estudar lesões medulares de muita gente que hoje anseia a reversão de paralisias, assim como eu.

Sei que de alguma forma, carrego em mim um pouco da luta de muitos brasileiros com deficiência e que precisam todos os dias lidar o com o dito irreversível.

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Desde 1997, pouco tempo após sofrer o acidente, passei a pesquisar profissionais que estudavam a cura para paralisias e fundei uma ONG para fomentar tais estudos e ajudar as pessoas com deficiência a ter um pouco mais de qualidade de vida. De lá pra cá, vejo que o irreversível só existe na cabeça de cada um. E na minha não há espaço para isso. Ela já está bem ocupada, tomando choques e buscando o resgate de movimentos.

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