
Por: Abner de Cassio Ferreira*
O problema não é a punição, mas o excesso
O debate penal contemporâneo no Brasil vem sendo marcado por uma falsa e perigosa dicotomia: ou se defende a imposição de penas máximas e simbólicas, ou se é imediatamente enquadrado como defensor da impunidade. Essa lógica, emocional e antijurídica, tem contaminado a reflexão serena sobre o Direito Penal, especialmente nos casos relacionados aos crimes contra o Estado Democrático de Direito introduzidos pela Lei nº 14.197/2021.
Este artigo não questiona a existência de responsabilidade penal, nem relativiza a gravidade de atentados institucionais. O ponto central da análise é outro: a deformação do sistema penal pela inflação punitiva, pela superposição indevida de tipos penais e pelo rompimento da escala de bens jurídicos historicamente construída pelo Direito Penal democrático.
A punição é necessária. O excesso é que corrói o Estado de Direito.
É nesse contexto que surge o chamado Projeto da Dosimetria da Pena, não como mecanismo de perdão, anistia ou apagamento histórico, mas como instrumento de correção constitucional do excesso, voltado à restauração da proporcionalidade, da racionalidade e da legitimidade do sistema penal.
Defender a dosimetria não é defender réus. É defender a Constituição.
A expansão penal pós-2021 e a ruptura da escala de valores
O Direito Penal moderno parte de uma premissa fundamental: a pena é a intervenção mais severa do Estado na liberdade do indivíduo e, por isso mesmo, deve ser utilizada com parcimônia e critérios rígidos.
A criação dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de golpe de Estado (art. 359-M) não é, em si, o problema. A dificuldade está no modo como esses tipos foram estruturados, nas faixas de pena estabelecidas e, sobretudo, na aplicação cumulativa que vem sendo adotada.
O resultado prático tem sido uma inversão preocupante da hierarquia dos bens jurídicos: condutas político-institucionais, sem morte, sem tomada efetiva de poder e sem ruptura real do funcionamento das instituições, passaram a gerar penas superiores ou equivalentes às previstas para crimes como homicídio, latrocínio ou estupro.
Esse desalinhamento rompe a coerência interna do sistema penal e compromete sua legitimidade ética e jurídica.
O princípio da proporcionalidade como limite ao poder de punir
A proporcionalidade não é um juízo moral subjetivo. Trata-se de princípio constitucional estruturante, amplamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Ela opera em três planos:
- Proporcionalidade em abstrato, que impõe ao legislador o dever de calibrar as penas conforme a gravidade do bem jurídico tutelado;
- Proporcionalidade em concreto, que exige que a resposta penal corresponda à efetiva lesividade da conduta;
- Proporcionalidade sistêmica, que obriga o ordenamento a manter coerência interna entre as penas previstas.
Quando crimes políticos recebem tratamento mais severo do que crimes contra a vida e a dignidade humana, esse triplo equilíbrio se perde. O Projeto da Dosimetria busca precisamente restaurar essa racionalidade, sem abolir tipos penais e sem negar a responsabilização.
Vedação ao bis in idem e concurso aparente de normas
Um dos pontos mais sensíveis da aplicação atual reside na fragmentação artificial de um único núcleo fático em múltiplos crimes autônomos. Golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tal como vêm sendo manejados, descrevem etapas de uma mesma empreitada e protegem o mesmo bem jurídico.
Punir o mesmo fato duas vezes, ainda que sob rótulos distintos, viola o princípio do ne bis in idem material.
A dogmática penal clássica sempre solucionou esse problema por meio dos critérios de consunção, subsidiariedade e especialidade. O Projeto da Dosimetria apenas positivaria legislativamente tais soluções, impedindo que a multiplicação de tipos seja utilizada como instrumento artificial de elevação da pena.
Crimes políticos e a falácia da acumulação punitiva
A tentação de punir exemplarmente crimes de natureza política é recorrente na história. Regimes autoritários fizeram do Direito Penal instrumento de neutralização do dissenso. Democracias maduras, ao contrário, punem com medida.
A acumulação punitiva não fortalece o Estado Democrático de Direito; enfraquece-o, pois substitui a racionalidade jurídica pela lógica da retaliação simbólica. A dosimetria correta funciona como freio institucional contra esse desvio.
Comparação estrutural com crimes contra a vida e a dignidade humana
A análise comparativa entre bens jurídicos revela com clareza o desequilíbrio atual. O homicídio simples possui pena de 6 a 20 anos; o homicídio qualificado, de 12 a 30 anos; o latrocínio, de 20 a 30 anos.
Como justificar que pessoas sem histórico de violência letal, sem resultado morte e sem supressão efetiva das instituições possam acumular penas equivalentes ou superiores a essas?
O mesmo raciocínio se aplica aos crimes contra a dignidade sexual. Quando o simbolismo político passa a receber tratamento mais severo do que a proteção da pessoa humana concreta, algo se rompe no núcleo ético do Direito Penal.
Restaurar a escala penal não significa minimizar crimes institucionais, mas recolocar o ser humano no centro do sistema jurídico.
Dosimetria não é anistia
A confusão deliberada entre dosimetria e anistia tem servido como instrumento retórico para interditar o debate.
Anistia extingue punibilidade, apaga o crime e possui caráter político excepcional. Dosimetria, ao contrário, é técnica penal de medição da pena, que ajusta a resposta estatal aos limites constitucionais.
O Projeto da Dosimetria não absolve, não extingue tipos penais e não elimina antecedentes. Ele recalibra faixas de pena e corrige mecanismos de cumulação indevida. Reduzir excessos não é perdoar crimes; é preservar a legitimidade do sistema penal.
Responsabilizar sem espírito de vingança
O Direito Penal surge historicamente para conter a vingança privada. Quando o próprio Estado passa a agir com lógica vingativa, o sistema se perverte.
Justiça é racional, previsível e limitada. Revanche é emocional, simbólica e expansiva. A aplicação maximalista e cumulativa dos crimes contra o Estado Democrático de Direito revela traços do segundo modelo.
Democracias maduras punem, mas não humilham; responsabilizam, mas não destroem completamente o indivíduo. Penas infladas, sem perspectiva de reintegração, convertem-se em mecanismos de neutralização política, incompatíveis com a Constituição.
A legitimidade constitucional da revisão legislativa
Não procede a objeção de que o Legislativo estaria interferindo indevidamente em decisões judiciais. O Parlamento possui competência constitucional para revisar políticas criminais que se revelem desproporcionais.
A aplicação retroativa da lei penal mais benéfica é garantia expressa no art. 5º, XL, da Constituição Federal. A pena é situação jurídica em curso, não fato consumado. Se o parâmetro legal se altera, seus efeitos devem ser ajustados.
Revisar a moldura penal não é afrontar o Judiciário; é exercício legítimo da função legislativa.
Individualização da pena e contenção do punitivismo
A individualização da pena é núcleo essencial do Estado de Direito. Quando o legislador cria faixas excessivamente amplas e permite acumulações automáticas, compromete esse princípio desde a origem.
O resultado é a uniformização injusta de situações profundamente distintas, violando a igualdade material. A dosimetria legislativa correta impede que a pena seja produto de engenharia normativa e a reconduz ao critério da culpabilidade individual.
Democracia forte pune com medida, não com fúria
Uma democracia segura de suas instituições não precisa demonstrar força por meio de penas desproporcionais. Estados inseguros punem com excesso; Estados maduros punem com equilíbrio.
O Projeto da Dosimetria da Pena fortalece o Estado Democrático de Direito ao restaurar a racionalidade da política criminal, reafirmar limites constitucionais e impedir o uso simbólico do Direito Penal como arma permanente de conflito.
Conclusão
A defesa da dosimetria da pena nos crimes contra o Estado Democrático de Direito não nasce de complacência, mas de compromisso constitucional. Ela se sustenta em cinco eixos essenciais: proporcionalidade, vedação ao bis in idem, comparação estrutural com outros crimes graves, correção do excesso sem anistia e responsabilização firme sem espírito de vingança.
Punir com medida não é fraqueza institucional. É coragem constitucional.
Um Estado que não consegue revisar seus próprios excessos punitivos perde autoridade moral. Ao contrário, a capacidade de autocorreção fortalece a democracia, preserva a credibilidade do sistema penal e impede que o Direito se transforme em instrumento de guerra permanente.
Defender a dosimetria é afirmar que justiça não se confunde com vingança — e que a verdadeira força do Estado reside na fidelidade às regras que ele próprio instituiu.
*Advogado, jurista e bispo evangélico, líder da Assembleia de Deus - Ministério de Madureira. Com mais de 30 anos de destacada atuação em defesa da liberdade religiosa e dos direitos fundamentais. Presidente da Comissão Especial de Juristas Evangélicos e Cristãos no Conselho Federal da OAB (CEJEC/CFOAB) e da União Internacional de Juristas Evangélicos e Cristãos (Unijur). É articulista. É conferencista internacional, autor e coorganizador de obras jurídicas.