Ex-freira e professora universitária. Advogada que sonha em ser mãe. Professora de biologia. A primeira pastora trans da América Latina. Mulher que descobriu o feminismo na maternidade. Acadêmica e militante feminista. Psicóloga. Engenheira. Ativista social e líder religiosa.
Essas são Maria José, Maira, Mileni, Alexya, Elisabete, Simony, Juliana, Beatriz e Wall. Mulheres e histórias diferentes. Em comum, todas são cristãs e, contrariando a imagem relacionada ao conservadorismo que suas religiões carregam, defendem o direito ao aborto.
Mesmo com opiniões e vivências diversas, as mulheres católicas e evangélicas que defendem o direito ao aborto, no geral, entendem que sua crença não deve pautar discussões de saúde pública que abarcam toda a sociedade e que deveriam, por princípio, ser laicas.
"As mulheres religiosas precisam refletir que nosso código religioso não deve ser o código que vai ser imposto a toda a sociedade. Não podemos transformar o que um grupo acha que é pecado em crime", opina Elisabete Pereira, mestranda em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismo e membro do Movimento Social de Mulheres Evangélicas do Brasil. "Precisamos tirar um pouco esse foco espiritual e trazer para a questão da vida material, da cidadania", completa.
"Eu tenho a minha religião, mas quando a minha religião afeta a crença do outro, ela vai diminuir essa outra pessoa. E, como cristã, eu não quero diminuir ninguém. Eu quero que as pessoas tenham liberdade e que sejam amadas e acolhidas", afirma a psicóloga Juliana Gomes, católica.
No final de setembro, a ex-ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber votou de forma favorável à descriminalização do aborto , fazendo com que o tema voltasse a ser bastante debatido em sociedade. Atualmente, o aborto até 12 semanas de gestação é legal no Brasil apenas em três casos: gravidez de risco à vida da gestante, gravidez resultante de violência sexual e anencefalia fetal.
Em todos os outros casos, a prática é considerada crime. Se a descriminalização do aborto, que teve julgamento pausado no STF após pedido de destaque do ministro Roberto Barroso, for aprovada pela Corte, isso significaria que a prática deixaria de ser um crime caso fosse realizada antes de 12 semanas de gestação.
Maria José Rosado, professora universitária, doutora em sociologia e presidenta da organização Católicas pelo Direito de Decidir, afirma que o voto de Rosa Weber foi "histórico, ousado e muito corajoso", e que "nunca vivemos um momento tão propício para a discussão e para uma possível votação da descriminalização do aborto como agora".
"Nós queremos que a discriminalização do aborto seja não apenas legal, penal, mas também social, que a sociedade entenda o aborto de outra forma. O aborto não pode ser tratado como um horror, com as fake news absurdas que passam nas redes sociais", afirma Maria José.
Para as mulheres cristãs, o tema do aborto é especialmente importante de ser debatido. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, a mais recente, 73% das mulheres que disseram já terem abortado no Brasil são católicas ou evangélicas.
Para as que defendem o direito ao aborto, a criminalização da prática faz com que suas "irmãs" sejam consideradas criminosas, além de terem suas vidas colocadas em risco. Para além da descriminalização, existe também a defesa de que o aborto seja regulamentado, o que faria com que o Sistema Único de Saúde (SUS) tivesse que realizar o procedimento - essa não é a discussão pautada no STF, e dependeria de decisões do Congresso Nacional .
"A gente precisa fortalecer um estado laico garantidor de direitos. Se isso acontece, não tem o que a igreja fazer. O pastor pode se estrebuchar no púlpito, falando que é pecado, mas, se o aborto for legalizado, a mulher pode sair dali e ir para uma UBS interromper a gestação que ele nem vai ficar sabendo", afirma Simony dos Anjos, mestre em Educação e integrante da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (entidade que não se posiciona institucionalmente em defesa do aborto).
Homens tomadores de decisões
Dentre os 11 juízes da composição atual do STF, que pode decidir sobre a descriminalização do aborto, há apenas uma mulher, a ministra Cármen Lúcia. A vaga de Rosa Weber ainda aguarda indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que vem sendo pressionado pela escolha de uma mulher negra , embora já tenha afirmado que não tomará sua decisão com base em "gênero ou cor".
Um assunto que diz respeito a mulheres, portanto, está nas mãos de homens. Além da Suprema Corte, o cenário se repete também dentro das igrejas católicas e evangélicas, que institucionalmente condenam o aborto.
Na Igreja Católica, pela impossibilidade de mulheres se ordenarem padres, todas as lideranças religiosas são homens. Já nas igrejas evangélicas, embora haja lideranças femininas, o discurso dominante ainda é pautado no machismo.
Em mais de 30 anos de luta pelos direitos das mulheres, Maria José afirma não ter visto mudanças dentro da Igreja Católica enquanto instituição no que diz respeito ao debate sobre o aborto, embora haja produções teológicas divergentes da oficial, como a teologia feminista.
"O próprio papa Francisco, que tem posições de compaixão em relação aos pobres, prega de forma diferente daquilo que foi a teologia da libertação, que tinha uma visão política de crítica às relações sociais capitalistas que criam a pobreza. O papa Francisco tem condenações fortes ao capitalismo, que cria essas desigualdades, mas o enfoque dele é mais de uma compaixão pelos grupos mais vulneráveis da sociedade. Não é uma postura mais audaciosa, revolucionária. Em relação a essas questões dos direitos sexuais, dos direitos reprodutivos, não há avanço. O papa é absolutamente contrário ao aborto, ele segue essa posição hegemônica dentro da igreja", analisa a socióloga.
"As autoridades católicas são homens, e são eles que definem as normas e as doutrinas. E definem a partir de uma concepção de que mulheres devem ser mães", completa.
Alexya Salvador, hoje reverenda da Igreja da Comunidade Metropolitana do Brasil, já vivenciou também o catolicismo e, antes da sua transição de gênero, chegou a frequentar o seminário com a intenção de se tornar padre. Na sua visão, apesar dessa forte diferença entre as duas religiões, já que no catolicismo não existem lideranças femininas, a prática é bastante similar.
"Muitas vezes, as mulheres que são lideranças evangélicas também estão embebidas nesse discurso machista e patriarcal de que se elas interromperem uma gestação, elas estão assassinando uma vida inocente. Elas nunca vão falar pelo viés da saúde pública", analisa.
A pastora Wall Moraes, que realizou uma verdadeira revolução nas Assembleias de Deus do Distrito Federal em 2011, quando conseguiu a aprovação para que mulheres pudessem ser consagradas ao pastorado, afirma que não há avanço se as mulheres não conseguirem "mexer na estrutura do patriarcado" dentro das instituições religiosas.
Para ela, a criminalização do aborto por parte das igrejas é uma das várias violências religiosas que mulheres enfrentam em suas comunidades. "Desde o momento em que a mulher passa a fazer parte de uma organização religiosa protestante, ela já passa a estar em situação de violência religiosa. Porque vão querer que ela não corte mais o cabelo, que ela não pinte a unha, que ela não use brinco, pulseira e colar, que ela não use batom, que a roupa dela seja um saião e que ela faça um coque no cabelo", afirma Wall.
"Nós não temos mais que aceitar a violência religiosa de um homem branco rico que ocupa os espaços de poder. É preciso dizer isso para as mulheres: o seu corpo pertence a você, e quem vai decidir o que você vai fazer com seu corpo é você. Nenhuma liderança religiosa tem que estar se metendo na sexualidade dos membros, tem que estar se metendo na saúde dos membros", completa.
Igreja é reflexo da sociedade
Embora a estrutura religiosa reforce padrões machistas, a discussão sobre o aborto é delicada em toda a sociedade brasileira, e não apenas em contextos cristãos. "Existe uma diversidade muito grande dentro da igreja evangélica, e eu acho que a dificuldade que a gente tem para conversar com os evangélicos é a mesma dificuldade que a gente tem para conversar com qualquer brasileiro. É um país moralista", opina Simony.
Para Maria José, essa diversidade, presente tanto nas igrejas evangélicas quanto na católica, é um reflexo dos embates que estão postos na sociedade como um todo.
"Hoje, se foca muito nos grupos evangélicos, como se todo o conservadorismo se concentrasse nos evangélicos, mas não é assim. O catolicismo é tão diverso internamente quanto são os evangélicos. Dentro da igreja evangélica, tem grupos, pastoras, pastores e comunidades extremamente avançadas politicamente, socialmente e em relação aos direitos da população mais vulnerável, reconhecendo que todo esse moralismo em torno do controle do próprio corpo atinge de uma maneira muito particular as mulheres periféricas. E esse ultra conservadorismo social, religioso e econômico está presente também dentro do catolicismo", analisa a socióloga.
Para Simony, o próprio posicionamento moralista de muitas lideranças religiosas a respeito do aborto é um posicionamento, sobretudo, político. "Para manter essa estrutura de poder da igreja, as lideranças precisam manter essa narrativa de controle, essa narrativa de moralismo extremo, porque é ela que vai garantir esse pânico social que vai segurar as pessoas dentro da igreja", afirma.
Na visão dela, as discussões sobre o tema dentro das igrejas só vão avançar quando avançarem também na sociedade. "Antes da Lei Maria da Penha, era super difícil falar de violência doméstica nas igrejas. Hoje, você vê igrejas fazendo congressos para discutir esse tema", exemplifica Simony.
"Eu não quero provar que o aborto é não ou não é pecado. As pessoas podem continuar achando que o aborto é pecado, até porque as pessoas acham que transar antes do casamento é pecado, mas continuam fazendo isso. A questão é: eu não preciso da permissão bíblica para que ele seja legal", completa.
No chão da igreja
Fora da militância, muitas mulheres cristãs ainda enxergam dificuldades em pautar o tema do aborto em suas comunidades e nos círculos religiosos que frequentam.
"Eu vejo muito uma abominação da ideia de discutir o tema do aborto, como se apenas discutir isso já fosse um enorme pecado. Existe essa barreira para começar uma discussão", afirma a professora de biologia Mileni Norberto, católica. "Eu sinto que as pessoas não se interessam em discutir, em saber qual a importância da descriminalização do aborto do ponto de vista da saúde pública. Elas só querem impor a opinião delas", completa.
Também católicas, a advogada Maira Barbosa e a engenheira Beatriz Camargo têm visões parecidas com as de Mileni. "Eu não me posiciono sobre esse tema em determinados círculos cristãos porque eu sei que serei extremamente julgada", comenta Maira.
Beatriz, que já tentou debater sobre o aborto e outros temas "polêmicos" com alguns amigos católicos, afirma que as discussões acabaram em rompimento. "A recepção foi extremamente reativa, eu diria até violenta. Eu ouvi frases como: 'Se você acha isso, você não é católica, você não faz parte da igreja, não deveria estar aqui'", conta.
Ainda que participe de grupos que debatem ativamente temas feministas, a evangélica Elisabete também sente essa resistência de levar pautas mais progressistas para dentro da igreja. "A religião, infelizmente, sempre foi utilizada como uma ferramenta de dominação. Então, não se quer tocar no assunto e já se puxa um gancho espiritual, do pecado. Se nós entrarmos na questão do pecado, todos nós pecamos. A Bíblia fala que aquele que diz que não tem pecado mente. Então, quem sou eu, pecadora, para julgar alguém que aborta?", reflete.
Contradição e hipocrisia
Na visão de Simony, o fato do aborto ser um tabu tão grande dentro das igrejas é uma grande contradição. "A igreja é muito feminina. Por isso, deveria ser mais difícil naturalizar a violência contra mulher, mas é mais fácil porque todas elas sofrem. Então, elas se acolhem, mas elas não têm muito o ímpeto de mudar a realidade que as fazem sofrer. De uma certa maneira, essa é uma grande contradição do espaço religioso. Essa ideia de que existe provação, mas a gente vai seguir firme, traz uma contradição muito grande", analisa.
"Quem deseja mudar essa realidade sofre um peso de exclusão tão grande que não é vantajoso, socialmente dizendo, porque eu vou ser excluída de um espaço que é importante para mim afetivamente", completa.
Vivenciando o contexto católico desde pequena, Juliana concorda. "Se você for ver, a presença feminina dentro da igreja é muito forte. A maioria das pessoas que você vê trabalhando em pastorais são mulheres, por exemplo. Porém, elas não ganham voz dentro da igreja, e isso é uma questão que precisa ser mais discutida", opina.
Diante disso, as católicas e evangélicas que defendem o direito ao aborto avaliam que, institucionalmente, as igrejas deveriam dar mais voz às mulheres sobre o tema do aborto e promover debates que partissem do ponto de vista da saúde pública. Antes disso, porém, elas dizem ser necessário que as instituições religiosas reconheçam a hipocrisia em seus discursos sobre a temática.
"A igreja também precisa entender seu papel hipócrita. Se é a defesa da vida humana que está em jogo, essa vida só tem valor ali, porque quando nasce e vai para um abrigo, a igreja não cuida; vai para as ruas, a igreja não está nem aí; é assassinado, a igreja não se importa. Ou seja, de que vida a gente está falando? Eu acho que a questão do aborto traz várias faces de hipocrisia da igreja, em um discurso que já não cabe mais em pleno século 21", opina Alexya.
"Quando jovens negros são assassinados, a igreja não se coloca em defesa dessa vida. Então, a gente percebe que a questão não é a vida. A questão realmente é o controle sobre os corpos femininos, é validar a submissão, ratificar o sistema patriarcal, que prevalece muito dentro das religiões de tradição judaico-cristã", concorda Elisabete.
"A mulher é dona do corpo dela. E é isso que Deus nos fala: que nós somos templos de Deus, nós temos autonomia sobre os nossos corpos", completa Alexya.