Protesto realizado em 2012, época em que foi aprovada a extensão do direito ao aborto em casos de anencefalia
José Cruz/Agência Brasil
Protesto realizado em 2012, época em que foi aprovada a extensão do direito ao aborto em casos de anencefalia


A ministra e presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, iniciou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 , que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação em todo o Brasil.

Após o voto da ministra relatora Rosa Weber , um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso suspendeu a votação virtual para que ela seja realizada presencialmente, no plenário da Casa, com a presença de todos os nove ministros e duas ministras.

O tema foi pautado na Corte próximo ao Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe , celebrado neste dia  28 de setembro . Caso a medida seja aprovada, o Brasil será mais um dentre vários países latinoamericanos, como o  México , Argentina e Uruguai , entre outros. 

A ADPF 442 , movida pelo Anis Instituto de Bioética , e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) , pede que a interrupção voluntária da gravidez deixe de ser considerada um crime sob o argumento de que a penalização contraria outros preceitos fundamentais da Constituição. 

De acordo com a ação, proibir o aborto nas primeiras semanas vai contra os princípios da dignidade da pessoa humana , da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante , da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas.

Na avaliação da ministra , a pena determinada pelos artigos 124 e 126 do Código Penal não estão de acordo com a Constituição, pois a punição prevista “versa questão de direitos, do direito à vida e sua correlação com o direito à saúde e os direitos das mulheres”, visto que não existe consenso sobre quando a vida humana se inicia.

“O aborto não se trata de decisão fácil, que pode ser classificada como leviana ou derivada da inadequação social da conduta da mulher”, afirmou a ministra, que considera a criminalização do aborto “irracional sob a ótica da política criminal, ineficaz do ponto de vista da prática social e inconstitucional da perspectiva jurídica”.





"Dor sem tamanho"

O moralismo e desamparo podem levar as mulheres que escolhem abortar a um sofrimento profundo
Pixabay
O moralismo e desamparo podem levar as mulheres que escolhem abortar a um sofrimento profundo


A legislação atual penaliza mulheres como Bárbara Floresta* (nome fictício) , que era universitária e tinha 22 anos quando descobriu uma gravidez indesejada, fruto de uma relação casual. 

“Sou filha de uma mãe solo que sofreu muito para criar duas filhas e ainda hoje tem muitas despesas comigo. Tinha medo de atrasar mais ainda o meu curso superior, e de nunca conseguir um emprego se saísse da faculdade com uma criança nos braços”, disse a jovem.

Muitas vezes, as circunstâncias da vida levam mulheres que desejam ser mães a fazer um aborto porque a gestação veio num momento inadequado de suas vidas. Foi o caso de Bárbara, que relata a decisão de abortar como a mais dolorosa que teve que tomar em toda a sua vida.

“Eu senti uma dor sem tamanho. Cheguei a sonhar que cuidava de uma menininha muito parecida comigo, que no sonho era minha filha. Acordei chorando tanto que não conseguia respirar. Sei que um embrião não tem consciência, mas ‘falei’ com aquele projeto de gente pedindo perdão pelo que eu estava prestes a fazer, e implorei que aquele ser voltasse para mim um dia, na hora certa.” 

Além do sofrimento intrínseco à interrupção da gestação, Bárbara ainda sofreu com a pressão do homem que a engravidou, que queria forçá-la a dar à luz e a pressionou psicologicamente ao máximo em seu momento mais frágil, achando que lhe faria mudar de ideia. Além disso, ela sabia que não poderia contar sobre a gravidez à sua mãe — que jamais aceitaria a decisão de abortar — o que trouxe o mais profundo desamparo. 

Entre um enjoo e outro, ela sentia medo de ser denunciada, processada, de ser presa. De ser mal tratada no hospital, de ter alguma complicação, de morrer. No “Dia D”, Bárbara enfrentou a maior dor (física) de sua vida. Tremia muito, tinha calafrios, enjoo, vomitava e teve diarreia por várias horas. 

Depois veio o sangue que formava poças no chão do hospital. “Eu descobri a gestação muito cedo e agi rápido. No dia do aborto eu só tinha 6 semanas de gravidez, e foi naquele momento que entendi porque as pessoas morrem por abortos clandestinos. Só não entrei em pânico por perder tanto sangue porque sabia que seria assim, do contrário, acharia que estava morrendo”, disse a jovem.

Anos depois ela ainda sofre de culpa por ter engravidado, mas nunca se arrependeu. Embora cicatrizada, a ferida emocional ainda dói a cada Dia das Mães, e em cada vez que alguém condena moralmente a prática do aborto — especialmente no seu âmbito familiar.

Diante disso, um dos grandes sonhos dela é viver num Brasil em que as mulheres “sejam tratadas como cidadãs, sejam respeitadas e aprendam na escola, desde cedo, como viver plenamente sua sexualidade com saúde, segurança e planejamento familiar gratuito”.

"A lei não cumpre o objetivo de tornar os abortos menos frequentes"

A ADPF 442 considera a criminalização do aborto inconstitucional
Mariama Correia
A ADPF 442 considera a criminalização do aborto inconstitucional


A advogada, em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), Gabriela Rondon , é uma das advogadas que elaborou e assina a ação que está em votação no STF. Ela destaca a importância de tratar o aborto como uma questão de saúde, visto que a penalização não cumpre com seu objetivo de reduzir o número de abortos realizados.

“Nossa argumentação é mostrar que a lei penal não cumpre o objetivo de fazer com que os abortos sejam menos frequentes. Quando as pessoas precisam interromper uma gestação, por questões tão fundamentais da sua própria vida, elas encontram um jeito. As evidências de saúde pública nos mostram que é uma prática extremamente frequente entre as mulheres”, explicou a advogada. 

Dados da  Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021 mostram que uma em cada sete mulheres de até 40 anos já fez pelo menos um aborto , a maior parte delas, antes dos 19 anos. Isso significa cerca de 500 mil mulheres por ano .

O estudo foi coordenado pela antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB), Débora Diniz; do professor visitante da Universidade de Columbia (que fica nos EUA), Marcelo Medeiros; e do professor da Universidade Estadual do Piauí (UFPI), Alberto Madeiro, ouvindo 2 mil mulheres em 125 cidades brasileiras. Confira  aqui a íntegra do estudo (publicado em inglês). 

Além de advogada e professora universitária, Gabriela também é co-coordenadora da clínica jurídica Cravinas - Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da UnB. Diante dos fatos, ela argumenta que “a lei penal não está tendo seu efeito declarado, de evitar abortos. Por outro lado, cumpre com o efeito perverso de empurrar as mulheres para a clandestinidade e colocá-las sob grave risco de adoecimento ou morte”. 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) , entre 2006 e 2015 foram registradas 770 mortes maternas cuja causa oficial da morte consta como “aborto”.

O número sobe para 1.763 se forem considerados os registros de mortes que mencionam a realização de um aborto, mas com outras razões apontadas como causa da morte — como infecções decorrente de formas rudimentares e inseguras de interromper a gestação, por exemplo.

nos casos de abortos legais realizados por razões médicas (quando o procedimento é a única chance de salvar a vida da gestante), apenas 1% termina em óbito.

Gabriela conta que a decisão de elaborar e remeter a ação ao Supremo foi tomada no contexto da crise de saúde provocada pelo Zika vírus , transmitido pelo mesmo mosquito que é vetor da dengue e causou  vários casos de microcefalia . Junto com os efeitos do vírus, o debate sobre direitos reprodutivos se reacendeu com muita força.

“Em 2017 foi o momento em que foi possível fazer essa articulação, que já era uma demanda bastante antiga, com um ente legitimado que pudesse apresentar a ação, que na época foi PSOL. Tentamos evidenciar que o próprio STF já tem elementos, na sua própria jurisprudência, que apontam uma solução para essa matéria . Fizemos referência, por exemplo, à ação para uso de células-tronco embrionárias e à ação anterior sobre a anencefalia , que já respondem a questões muito fundamentais sobre o que significa direito à vida, e que violações de direitos podem acontecer a partir da gestação compulsória por uma lei penal”, disse Gabriela. 

Além de preservar a vida e saúde de mulheres adultas, a descriminalização do aborto, segundo Gabriela, é importante para dar segurança às mulheres e principalmente às meninas que têm direito a abortar em razão de estupros , mas têm o acesso ao aborto legal dificultado, negado ou judicializado, revitimizando crianças violentadas. 

“É muito importante retomar o caso das menininhas estupradas que tiveram o direito ao aborto legal negado. São casos muito comuns, acontecem o tempo todo”, disse a doutora em direito. 

Durante a entrevista, foi lembrado o caso emblemático que chocou, chamou a atenção e inflamou os ânimos de pessoas em todo o país quando  uma menina de apenas 10 anos que vivia no Espírito Santo que foi estuprada por seu tio e teve que viajar ao Recife para poder realizar o aborto legal no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam) da Universidade de Pernambuco (UPE), pois teve seu direito negado.

A menina e sua família foram assediadas  pelo governo Bolsonaro, na figura da então ministra, que hoje é senadora, Damares Alves. Em seguida, o nome da criança e o hospital onde o aborto seria realizadoo foram expostos na internet, compartilhados por fundamentalistas religiosos e políticos de extrema direita do estado.

Esses mesmos fundamentalistas convocaram uma multidão para fazer vigília em frente ao hospital, chamando de “assassina” uma criança violentada que teve que ser escondida no porta-malas do carro para entrar na unidade de saúde e segurava, junto ao peito, uma pequena girafa de pelúcia. 

Com a repercussão do caso e a exposição do nome e dados pessoais da menina na internet (prática flagrantemente ilegal), a família da menina aceitou participar do Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (Provita), oferecido pelo governo do Espírito Santo para dar apoio à família da menina para mudanças de identidade e endereço. 

A ADPF 442 também apoia a argumentação em decisões de outros países cujos tribunais já enfrentaram esse tema, para inspirar o STF e facilitar o processo decisório.

Gabriela Rondon  reforça que o ponto central da ADPF 442 é fazer os ministros e ministras do Supremo se sensibilizarem com a dor das mulheres e entender que a criminalização do aborto fere direitos fundamentais das mulheres, e que embora afete a todas, independentemente de recortes de classe, raça ou religião, a lei penal antiaborto reforça desigualdades sociais, tornando-se, portanto, inconstitucional.

“Por outro lado, a gente consegue, na comparação com evidências de outros países, mostrar que outras políticas de saúdeque não são baseadas em criminalização das pessoas que gestam têm efeitos mais benéficos, inclusive na redução de abortos quando você para de usar a lei penal. A gente mostra tudo isso para pedir que o STF analise se a lei é compatível ou incompatível com a Constituição, e a nossa tese é de que ela é incompatível”.

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