O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou e publicou no Diário Oficial da União, no dia 12 de janeiro deste ano, a Lei 14.532/23, que passa a tipificar a injúria racial como crime de racismo.
A partir desta mudança, o crime de injúria teve aumentada a pena de um a três anos para dois a cinco anos de reclusão. Além disso, a pessoa que cometer este delito não terá mais direito a fiança e a sentença não poderá mais prescrever.
O texto da Lei aponta ainda que a pena será dobrada se o preconceito foi praticado por duas ou mais pessoas, assim como se o crime ocorrer em ambientes esportivos, culturais ou com finalidade humorística.
E a injúria racial maquiada de humor é, infelizmente, muito presente na nossa sociedade. Não só nos conhecidos shows de stand up comedy, como também em ambientes comuns como o profissional e o educacional. Este tipo de intolerância disfarçada de brincadeira é classificada como racismo recreativo.
De acordo com Irapuã Santana, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP, o racismo recreativo acontece quando o uma pessoa usa o véu do entretenimento para fazer uma discriminação de cunho racial. Ele ressalta ainda que injúria racial sempre foi crime, mas que, com esta nova lei sancionada por Lula, pessoas que a utilizarem para obter lucro em shows serão ainda mais penalizadas.
“Sempre foi crime você xingar e ridicularizar uma outra pessoa por conta da sua cor da pele. O que acontece agora é que, se a pessoa que faz isso está ganhando dinheiro em cima deste preconceito, ela terá a pena aumentada”, diz o advogado.
O jurista destaca ainda a importância de diferenciar a prática do racismo da injúria racial. Isso porque, apesar dos crimes agora corresponderem à mesma lei, há uma diferença essencial entre as duas ações.
“A injúria é a ofensa aplicada a uma pessoa específica, ou a um grupo de pessoas específicas. Já o racismo é quando a ofensa ou ridicularização refere-se a um grupo indeterminado de pessoas”, explica Irapuã.
Mudanças efetivas na aplicação da lei
Para além de uma alteração no campo Legislativo, a sanção assinada pelo chefe do Executivo do Brasil também significa uma mudança importante no histórico de punições aplicadas pelo sistema Judiciário do nosso país.
“Essa mudança acaba com uma resistência histórica e institucional do nosso sistema de justiça. Porque quando você estava com a injúria fora do código penal, na delegacia e no Judiciário se falava ‘se está fora da lei de racismo, então não é racismo, cabe fiança, e é prescritível’. Agora não cabe fiança, não cabe prescrição e não cabe essa substituição da pena privativa de liberdade para uma alternativa”, enfatiza o advogado.
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Santana completa afirmando que a alteração na lei é também importante porque, a partir de agora, a pessoa terá de “pensar duas vezes” antes de praticar a injúria racial. “Se ela for condenada a um ano de prisão, terá de ficar um ano na cadeia. Não pode mais responder em liberdade e pagar algumas cestas básicas, por exemplo.”
Ele destaca ainda que, além do infrator não ter mais escapatória no âmbito criminal, há cada vez mais chance de uma pessoa ser flagrada cometendo o crime, principalmente por conta de provas produzidas por meio da gravação de vídeos ou áudios com o próprio celular.
Impactos psicológicos do racismo recreativo
O racismo recreativo, assim como as outras expressões deste preconceito, tende a afetar a saúde mental das pessoas consideradas alvos. De acordo com Conceição Costa (Ceça), psicóloga e coordenadora geral da Anpsinep (Articulação Nacional de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadoras (es)), o Brasil é pautado por relações de subalternidade onde pessoas negras e outros grupos minorizados são os mais afetados.
“O humor, o chiste, a forma de pensar o subalterno como engraçado, na verdade, é a forma como as violências, sobretudo as violências raciais, se apresentam de modo violento, perverso e adoecedor”, destaca a pesquisadora.
Ceça afirma que esse preconceito velado perpetua um histórico de desigualdade onde pessoas brancas têm a liberdade para ofender negros (as) sob a justificativa de que aquilo não passou de uma brincadeira.
“A gente continua alimentando uma relação de desigualdade que é muito perversa, onde a gente pode rir daqueles que são os vulneráveis. E para as pessoas que sofrem o racismo, os danos são em todos os sentidos, são simbólicos, são materiais. Mas os danos emocionais são os mais difíceis da gente compreender, porque não são muito tratados”, diz a psicóloga.
“O jovem preto que antes de sair de casa pensa três vezes no modo como vai se vestir porque os colegas vão fazer piada com seu cabelo, com sua cor, com seu nariz e com sua boca, desenvolve um processo de ansiedade”, complementa.
Danos físicos e mentais
O preconceito estrutural que permeia a sociedade brasileira afeta não só mentalmente, mas também fisicamente as pessoas que sofrem determinada discriminação ou injúria. Neste ponto, Conceição ressalta que somos “seres de integração”.
“O racismo afeta os condicionantes físicos e emocionais. Então afeta sim o corpo e a mente. Porque, se eu não estou bem emocionalmente, como é que vou desenvolver a minha vida na escola, nas relações afetivas, como vou desenvolver a minha vida no trabalho?”, pontua.
Como forma de lidar e enfrentar as intolerâncias cotidianas, a pesquisadora lança luz sobre o fato de que o racismo, em específico, não é um problema das pessoas negras e que, por isso, todos devem se envolver de alguma forma com a causa.
“Consciência racial para as pessoas negras, o letramento racial para as pessoas brancas. Letramento racial é entender que é preciso se portar como antirracista, e isso significa práticas para enfrentar o racismo, porque o racismo não é problema de preto, é problema de branco.
Para os negros, ela afirma ser importante uma noção de aquilombamento, ou seja, integrar coletivos que discutam a questão racial dentro de uma comunidade, dentro de grupos.
Ceça destaca também que o acompanhamento constante da psicoterapia é importante para que, quando pessoas negras forem afetadas, elas se fortaleçam e entendam que o racismo não é culpa delas, mas sim um problema complexo criado por outros grupos que, infelizmente, tem o objetivo de atingi-las e desumaniza-las.
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