Nos últimos dias, o participante Gabriel, do Big Brother Brasil, foi repreendido pela colega Marvvila por utilizar o termo “criado-mudo”, que, segundo ela, se tratava de uma terminologia racista. A fala da cantora de pagode fez com que tal discussão voltasse aos holofotes na internet. Mas afinal, o termo “criado-mudo” realmente tem uma origem racista?
Explicação do porquê tal termo é considerado racista
Em 2019, uma empresa de móveis fez uma propaganda para um dos produtos que, nela, trazia uma explicação quanto a origem do nome deste produto. A campanha de marketing trazia diversas pessoas que eram questionadas sobre como chamavam o móvel, e se elas sabiam a origem e o cunho racial que ela trazia. A propaganda foi veiculada durante o mês da Consciência Negra, e vinha com uma missão de mudar e descontinuar o termo “criado-mudo”, com a hashtag #CriadoMudoNuncaMais estampando a campanha.
Segundo as informações mostradas pela empresa, o móvel teria referências aos escravos do Brasil colonial que ficavam na cabeceira da cama dos senhores, com o objetivo de servi-lo durante a noite. Como o local ao qual o escravizado ficava era de grande circulação de informações íntimas, os escravizadores amputavam a língua para que não fosse possível revelar os segredos ali conferidos.
A explicação que foi veiculada pela empresa acabou sendo tida como verdadeira, e um grande estigma foi criado acerca do termo. Entretanto, desde 2021, uma discussão cresceu na internet para comprovar se tal terminologia realmente seria racista, gerando controvérsias sobre a origem desta história.
Discussões sobre a origem do termo
Após a história contada pela empresa ter sido abraçada, e um movimento para que o termo não seja mais usado por ser tido como racista, uma nova onda de questionamentos foram levantados sobre a origem. Em novembro de 2021, a Agência Lupa, veículo jornalístico conhecido pelo trabalho de fact check, juntamente ao Notícia Preta, fez uma publicação no Twitter com o objetivo de desmistificar palavras tidas com origem racista, mas que na realidade não há indícios de tais etimologias. Dentre elas, o termo “criado-mudo” foi um dos mais repercutidos.
A explicação para a origem do nome do móvel vem do inglês dumbwaiter, que em uma livre tradução se pode ler “criado-mudo”. Entretanto, trata-se de um elevador pequeno que tinha como objetivo o transporte de comida entre os andares da casa. O mecanismo aparece na arquitetura desde o século XIX.
Outro ponto ressaltado pela Agência foi o fato do verbete não estar presente nem no Dicionário da Língua Brasileira, de Luiz Maria da Silva Pinto, de 1832, nem no Dicionário da Lingua Portuguesa, de Antônio de Moraes Silva, de 1890. Neste último, o nome dado para o “banquinha que se põe junto a cabeceira do leito” era o de “donzella”.
Com a repercussão do assunto nesses no reality show da Globo, a internet acabou resgatando tal discussão, e novamente a contestação do termo surgiu. O perfil História Preta publicou um vídeo onde refutava a fala da participante do programa.
A língua portuguesa e a eliminação de palavras do vocabulário
Ainda que a origem do termo “criado-mudo” seja muito discutida, outras palavras que de cunho racista ainda estão presentes no vocabulário do povo brasileiro. Em dezembro de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) publicou uma cartilha que visava trazer a origem de diversas palavras. Dentre eles está o “criado-mudo” com um adendo do TSE que diz: “independentemente da origem da palavra, o simples fato de seu uso ser relacionado com a escravização de pessoas negras é justificativa suficiente para o abandono de seu uso vocabular, tanto mais quando há expressão mais fidedigna para designar o móvel: “mesa de cabeceira”.
Palavras como “esclarecer”, “escravo”, “meia-tigela” e “nega maluca”, além de expressões como “feito nas coxas”, foram apontadas como passíveis de exclusão. Para o professor-doutor e vice-diretor da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC) da Unesp Bauru, Juarez Tadeu de Paula Xavier, a promoção do TSE pela exclusão destes termos “é extremamente importante”. “A língua é um instrumento vivo e ela precisa ser atualizada, tanto na linguagem comum, quanto na linguagem legal jurídica”.
O professor levanta o ponto que a atualização visa trazer a “humanidade” para a população preta que, pelo código penal século XIX, “não vê e não tem a população negra como uma população sujeita de direito”. No caso, “toda a linguagem jurídica [do século XIX]criminaliza a população negra”. Como referência, o professor cita a ficha hospitalar do escritor Lima Barreto, dizendo que “é assustador” a forma como ele é descrito.
“Quando o Tribunal Superior Eleitoral define uma série de expressões que podem ser consideradas discricionárias, preconceituosas e impede isso informando a partir de uma cartilha, é um avanço extremamente significativo, porque muitos candidatos tinham associado aos seus nomes eleitorais, expressões profundamente preconceituosos de todas as naturezas”, diz Juarez.
O professor completa dizendo que “isso é o reconhecimento do Tribunal Superior Eleitoral de que a linguagem corresponde uma determinada época, e que a linguagem pode ser um fator de violação de Direito de grupos sociais.”
Quando questionado sobre a forma como as discussões sobre a eliminação de algumas palavras com sentidos racistas — além de termos que são consideras capacitistas, xenofóbicas e misóginas — tem sido recebida pela população, o professor vê uma rejeição de um grupo que “não quer que haja nenhuma superação da desigualdade material, e [ao qual] essas mesmas pessoas defendem que se mantenham os traços singularizadores do apartheid na linguagem também”. Para Juarez, a discussão tende a ser mais aceita por “pessoas que lutam politicamente pela superação da desigualdade material e correspondentemente com a superação da desigualdade subjetiva.”
O professor ainda aprofunda na área da comunicação, especialidade ao qual leciona, dizendo que há um movimento nas redações para que assuntos que debatam tais desconfortos na linguagem, seja ela racista, misógina ou xenofóbica, para que a uma mudança real haja na sociedade.
A cartilha com expressões consideradas racistas publicada pelo TSE pode ser conferida no site do tribunal.