O presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou, entre abril e maio deste ano, as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2 , dois projetos inicialmente aprovados pelo Senado e que previam repasses para o setor cultural brasileiro.
Dentro do contexto da pandemia, as duas iniciativas tinham como principal objetivo fornecer recursos públicos para que artistas e produtores culturais pudessem alavancar novamente as suas atividades, dado que o setor foi um dos mais impactados economicamente pela pandemia.
“Com os vetos, a gente corre o risco de alguns artistas terem de deixar o fazer cultural para seguirem outros caminhos para ter alguma receita. Também há o risco de ter uma redução da quantidade e da diversidade da programação cultural brasileira”, destaca Aline Akemi Freitas, advogada especialista no setor cultural e sócia da CQS/FV advogados.
Ainda há a expectativa de que os vetos sejam revertidos pelo Congresso, uma vez que as duas leis foram aprovadas por quase 100% dos parlamentares. Contudo, não existe um prazo pré-definido para que isso aconteça.
Diferenças entre as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2
Mesmo se tratando de dois projetos que tinham o intuito de repassar verbas para a realização de atividades culturais no país, as duas leis propunham fazer essa distribuição de maneiras diferentes.
A Lei Paulo Gustavo, por exemplo, tinha um caráter mais emergencial e previa o repasse de R$ 3,86 bilhões dos recursos federais a estados e municípios para que o setor cultural pudesse enfrentar os efeitos da pandemia de Covid-19.
Deste valor, R$ 2,79 bilhões teriam como destino ações do setor audiovisual, enquanto R$ 1,06 bilhão seriam destinados para o restante das atividades culturais.
“Este é um projeto emergencial, um socorro para que este segmento possa se capitalizar e seguir funcionando. Muita gente pode não ter fôlego para seguir produzindo suas atividades”, ressalta a advogada Cristiane Olivieri, Diretora da Olivieri e Associados Advocacia, empresa que atua na área de consultoria para cultura, comunicação e entretenimento.
Cristiane afirma também que as atividades culturais têm o poder de gerar empregos direta ou indiretamente e, por conta disso, essa lei poderia ter um impacto econômico em diversas áreas que cercam os eventos.
A Lei Aldir Blanc 2, por sua vez, tratava-se de um projeto de fomento que repassaria R$ 3 bilhões anuais para o setor cultural por um período de cinco anos. A verba seria distribuída entre estados e municípios da seguinte maneira: 80% destinados a editais, cursos, atividades artísticas que pudessem ser transmitidas pela internet e manutenção de espaços culturais; e 20% direcionados a ações de incentivo a programas e projetos que tivessem por objetivo democratizar o acesso à cultura.
“Com esta lei, você cria veias por todo o Brasil, e todo o dinheiro chega nos estados e nos municípios. E é muito mais eficiente e democrático o prefeito e o governo terem o poder e a condição de entender no que aquela região precisa se aperfeiçoar, se é na música ou no artesanato, por exemplo”, diz Olivieri.
A nova lei aperfeiçoaria uma outra legislação, com o mesmo nome, que entrou em vigor durante a pandemia e expirou em dezembro de 2021. Com ela, o governo liberou um total de R$ 3 bilhões para a manutenção de espaços culturais, pagamento de uma renda emergencial a trabalhadores do setor cultural e também auxílio na abertura de editais e chamadas públicas para artistas.
“Esses dois projetos, sem dúvida alguma, acabariam por inserir recursos no setor e fazer com que o fluxo da produção cultural voltasse a ser alavancado, principalmente após os impactos da pandemia”, afirma Aline.
Como ocorre o financiamento à cultura no Brasil?
As atividades culturais brasileiras, assim como em muitos outros países, dependem muito do repasse de recursos públicos para serem produzidas. As duas especialistas ressaltam a importância das leis federais para o setor, com destaque para a Lei Rouanet, que autoriza artistas e produtores culturais a buscarem investimento privado para suas iniciativas. Em troca, as empresas abatem parcela do valor investido no Imposto de Renda.
“Existem, essencialmente, dois mecanismos de repasse para a cultura. Um de repasse direto, que na Rouanet é feito por meio do Fundo Nacional de Cultura e editais. O outro é o mecenato, ou fomento indireto, que ocorre quando o artista apresenta o seu projeto, a Secretaria Especial de Cultura aprova essa iniciativa previamente e a partir disso o produtor ganha uma chancela para buscar patrocínio junto a empresas e pessoas físicas”, afirma Aline Freitas.
A Lei de Incentivo à Cultura foi criada em 1991 e, apesar de ser criticada pela dificuldade de pequenos produtores e artistas terem dificuldade para captar recursos advindo dela, ainda é tratada como um mecanismo muito significativo para a realização das atividades culturais.
“A Lei Rouanet tem 30 anos e nós podemos observar uma grande transformação no cenário cultural. Ela fortalece uma série de instituições sem fins lucrativos, como museus e projetos de arte e educação, além de festivais e produções independentes”, afirma a diretora da Olivieri e Associados Advocacia.
Aline e Cristiane também apontam para a importância das receitas advindas da loteria esportiva federal para o abastecimento do Fundo Nacional de Cultura. Há uma determinação legal para que essa verba seja transferida para o setor cultural.
A fiscalização do repasse de verbas para a cultura
A fiscalização no repasse dos recursos públicos para o setor cultural é famosa por ser muito rígida, uma vez que produtores e artistas, municípios e estados devem prestar contas sobre a realização das atividades para a União.
“Do ponto de vista financeiro, você tem uma prestação de contas que é muito robusta e detalhada. Do ponto de vista da realização das ações, os produtores e artistas também precisam comprovar que aquelas ações apresentadas foram executadas no formato correto”, diz Aline.
A advogada completa destacando que cabe aos estados e municípios escolher o formato da prestação de contas de quem recebe o dinheiro.
Cristiane enfatiza ainda que, como os orçamentos dos projetos culturais são previamente aprovados, todas as prestações de contas estão entregues. De acordo com ela, por isso não faz tanto sentido a alegação de Bolsonaro de que não há transparência na execução das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc.
“Se você quer continuar fazendo um projeto, precisa entregar a sua prestação de contas. Logo, todas elas estão entregues, se o governo não analisou, isso não é um problema dos produtores culturais, é uma questão para quem não fez a análise”, afirma a especialista.
A importância da cultura para o país
O setor cultural é de suma importância não só para as atividades realizadas por produtores e artistas, como também para alavancar áreas correlatas, como a economia e o turismo, como destaca Aline Akemi.
“Este setor tem uma capacidade muito grande de empregar pessoas e de mudar efetivamente a economia, seja por meio da venda de passagens aéreas em paralelo ao setor de turismo, como também a partir do recolhimento de impostos, que é muito expressivo na cultura.”
No âmbito econômico, a cultura representa cerca de 2.6% do PIB brasileiro e emprega um total de 2,5 milhões de pessoas envolvidas nos eventos.
Para além disso, o Brasil tem na sua essência a criatividade e a produção cultural, sendo reconhecido internacionalmente por isso. Cristiane Olivieri, inclusive, usa a Constituição brasileira para dar luz à importância das atividades culturais no país.
“A Constituição diz que a cultura é um direito individual, assim como os direitos à saúde e à educação. E, portanto, cabe ao Estado apoiar a cultura e a sua diversidade, sem censura, mantendo a liberdade de expressão, o financiamento, o apoio e a garantia de realização das atividades.”
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