Toffoli vê risco no combate à tortura e vota para derrubar decreto
Nelson Jr./SCO/STF
Toffoli vê risco no combate à tortura e vota para derrubar decreto

Em julgamento iniciado nesta sexta-feira, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou para derrubar os principais trechos de um decreto do presidente Jair Bolsonaro que, entre outras coisas, acabava com a remuneração dos peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Responsáveis por fiscalizar a ocorrência da prática em prisões e outras instalações de privação de liberdade, eles passariam a trabalhar de graça. Para Toffoli, a falta de remuneração impossibilita um trabalho de dedicação integral e desestimula a entrada de profissionais especializados no órgão, fragilizando o combate à tortura no país.

O decreto já tinha sido suspenso pela Justiça Federal do Rio de Janeiro no curso de outra ação, mas, até o momento, o STF ainda não se pronunciou sobre o assunto. Se prevalecer a posição de Toffoli, que é o relator do caso na Corte, os peritos terão uma decisão do STF garantindo sua remuneração. O julgamento no tribunal é no plenário virtual, em que os ministros votam pelo sistema eletrônico da Corte, sem se reunirem. Os integrantes do tribunal têm até sexta-feira da semana que vem para votar. A decisão será tomada por maioria de votos.

"O exercício da função de perito do MNPCT em caráter voluntário teria uma única consequência: o afastamento de profissionais qualificados e dispostos a comprometerem-se com o trabalho de fiscalização e, consequentemente, a impossibilidade de execução das competências legais do órgão. É dizer: como poderá o Estado exigir de profissionais qualificados e especializados tamanha responsabilidade e risco sem remunerá-los para tanto?", diz trecho do voto de Toffoli.

Toffoli também citou os compromissos do Brasil para acabar com a tortura, que ainda continua ocorrendo nos presídios do país. Para o ministro, o decreto "tem o condão de fragilizar o combate à tortura no país", "viola frontalmente a Constituição", e esvazia políticas públicas previstas em lei. Mudanças na legislação teriam que ser feitas apenas pelo Congresso Nacional, e não por decreto presidencial, havendo portanto violação à separação dos poderes e abuso de poder regulamentar. Para Toffoli, "a violação se mostra especialmente grave, diante do potencial desmonte de órgão cuja competência é a prevenção e o combate à tortura".

O MNPCT, ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tem acesso às instalações de privação de liberdade, como prisões e instituições socioeducativas, para verificar a ocorrência de tortura. O órgão é composto por 11 peritos com mandato de três anos, tendo autonomia para escolher os locais que vão visitar e elaborar seus relatórios.

PGR mudou de posição após troca de comando

Em agosto de 2019, a Procuradoria-Geral da República (PGR), então comandada por Raquel Dodge, contestou o decreto no STF. Ela argumentou que uma remuneração adequada é condição para o trabalho independente dos peritos do MPNCT. O atual procurador-geral, Augusto Aras, é mais alinhado ao presidente Bolsonaro e, posteriormente, defendeu a rejeição da ação apresentada pela antecessora. Ele não chegou a dizer se concordava ou não com o decreto de Bolsonaro, mas argumentou que a questão já está sendo analisada na Justiça Federal do Rio de Janeiro, não cabendo ao STF interferir no assunto.

Toffoli refutou esse argumento. Em seu voto, ele lembrou que houve apenas uma liminar na Justiça Federal, ou seja, não houve decisão definitiva. Destacou ainda que os termos da determinação da Justiça Federal abrem brecha para que futuros peritos do MNPCT deixem de receber remuneração.

Na ação, Dodge destacou que o modelo de trabalho voluntário não é compatível com a missão do órgão, que não pode sofrer descontinuidades, e deve estar a salvo de pressões e ficar a cargo de pessoas qualificadas. Segundo ela, o decreto "inibe a atuação profissional e contínua do MNPCT já que cria um regime de trabalho gratuito e voluntário para os peritos, que não mais poderão se dedicar ao exercício deste mandato legal, para fazer cumprir a Constituição em relação a mais de mil unidades de internação prisionais e centenas de outras unidades de internação espalhados no imenso território brasileiro".

Dodge apresentou outro tipo de argumento, centrado na forma como Bolsonaro tentou fazer as mudanças. Para ela, uma alteração no MNPCT, órgão que foi criado por uma lei aprovada em 2013, só poderia ocorrer por meio da aprovação de outra lei no Congresso Nacional, e não por um decreto presidencial. Ela destacou ainda que a criação do MNPCT foi parte de compromisso internacional assumido pelo Brasil para prevenir e combater a tortura e tratamento eu penais cruéis, desumanos ou degradantes.

Presidência defendeu decreto

O decreto de Bolsonaro foi editado em junho de 2019. Além de acabar com a remuneração dos peritos, o texto remanejava o MNPCT para o Ministério da Economia e exonerava quem estava o cargo na época. Esses pontos, porém, foram revogados posteriormente pelo próprio presidente e o órgão voltou a ser ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Por outro lado, o trecho que determinava trabalho voluntário foi mantido.

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Em maio de 2020, o então relator da ação no STF, o ministro Luiz Fux, determinou que a Presidência da República, a Advocacia-Geral da União (AGU) e a PGR, já sob a direção de Aras, se manifestassem. A PGR, levando em conta, entre outras coisas, o fato de a questão já estar sendo analisada na Justiça Federal, pediu a rejeição da ação.

A Presidência da República e a AGU, que era comandada pelo ministro José Levi na época, defenderam o decreto. No ponto central, que é a remuneração dos peritos, disseram que a lei que criou o MNPCT não lhes garantiu o direito à remuneração. Assim, o decreto poderia sim estabelecer um trabalho voluntário. Também lembraram que a Justiça Federal já discute o tema, não sendo necessária a ação no STF. Ressaltaram ainda que o decreto tem por objetivo apenas regulamentar a lei, sem desrespeitá-la. Outro ponto destacado foi que a revogação posterior de pontos do decreto impediria a análise da ação.

"Vale frisar que a forma de trabalho dos peritos do Mecanismo se diferencia substancialmente das atividades prestadas pelos servidores públicos e o exercício de sua atividade não é incompatível com o exercício de outra atividade remunerada, pública ou privada", destacou a AGU, acrescentando que "a autonomia do MNPCT decorre de apoio técnico, financeiro e administrativo necessários ao funcionamento do órgão".

"Justamente por não se tratar de cargo público criado por lei, o caso em tela se amolda à função de relevante interesse público não remunerada, que é largamente utilizada na Administração Pública, sobretudo para participação em Comitês, Grupos de Trabalho, Conselhos e inúmeros outros colegiados da Administração Pública Federal, os quais contam com a participação de representantes da sociedade civil, e que é a exata situação jurídica do caso em tela", diz trecho de outro documento elaborado também pela AGU e encaminhado pela Presidência da República.

Várias entidades, entre elas a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Defensoria Pública da União (DPU), também se manifestaram na ação. Ambas foram favoráveis à suspensão do decreto.

Damares diz que órgão está em pleno funcionamento

O MNPCT é um dos 15 órgãos colegiados ligados ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Em discurso na Organização das Nações Unidas (ONU) na segunda-feira de Carnaval, a ministra Damares Alves, que chefia a pasta, disse que MNPCT estava em pleno funcionamento. Na prática, porém, desde 2019 o governo tem enfraquecido a atividade dos órgãos colegiados voltados para a proteção de minorias e monitoramento de violações de direitos humanos, seja alterando a composição para aumentar sua influência, retirando recursos ou até mesmo mudando o foco de trabalho.

No caso do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), órgão colegiado também ligado ao ministério e responsável por indicar os integrantes do MNPCT, o governo não conseguiu acabar com o grupo, mas usou uma briga judicial para alterar sua composição. Nove dos 12 representantes da sociedade civil que compõem o colegiado foram destituídos no mês passado pela ministra.

Após a declaração de Damares na ONU, o MNPCT divulgou nota contestando-a. Apontou desmonte da equipe administrativa que o assessora, reclamou da falta de autonomia financeira, e citou a destituição de integrantes do CNPCT, que elege seus integrantes. Em nota ao GLOBO, o ministério reiterou que o mecanismo está em "pleno funcionamento", e destacou que os peritos continuam remunerados, que todas as vagas estão preenchidas, e que há apoio administrativo e orçamentário.

Em seu voto, Toffoli lembrou que o ministério "tem a obrigação legal de fornecer o devido suporte administrativo, financeiro e logístico ao MNPCT, de forma a promover o pleno funcionamento do órgão". Ele ainda fez um apelo para que o Congresso estabeleça em lei as condições necessárias para uma atuação independente do MNPCT.

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