Estudantes do Complexo do Salgueiro perderam Enem por causa de operação policial
Marcos Porto/Agência O Dia
Estudantes do Complexo do Salgueiro perderam Enem por causa de operação policial

Data do primeiro dia de provas do  Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o último domingo, 21 de novembro, já se mostrava tenso o bastante para todos aqueles que estavam prestes a realizar a prova. Naquela manhã, porém, a violência atravessou o caminho da candidata Fernanda (nome fictício), impedindo-a de tentar uma vaga na universidade. Moradora do  Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, a estudante de 18 anos foi obrigada a desistir do vestibular por causa da operação policial que resultou em ao menos nove mortes.

"Me senti frustrada, porque isso é uma coisa para a qual a gente se prepara o ano inteiro para chegar o dia e uma infelicidade atrapalhar e acabar com todo o nosso planejamento. Ainda mais um exame de nível nacional, uma das únicas formas que uma pessoa pobre tem de entrar numa universidade. Com isso, praticamente acabou o sonho esse ano", desabafa.

A vestibulanda conta que era intensa a movimentação de policiais no complexo no dia. Ela aguardou até que a situação se acalmasse um pouco para sair de casa a tempo do início do exame. Na rua, deparou-se, segundo narra, com cenas da guerra que se desenrolava no local: policiais revistavam moradores com agressões e gritos.

Fernanda até pensou em maneiras de cruzar rapidamente as barricadas que cercam a região, onde os ônibus não mais circulavam. Mas pensou melhor, deu meia-volta e retornou para casa. Naquele momento, recolheu-se também o desejo da estudante de entrar para uma faculdade pública. Embora tenha o sonho de entrar para a Marinha, ela também cogita cursar Enfermagem, Medicina ou Matemática.

"Em toda operação, ônibus nunca circula. Muitas vezes as pessoas se arriscam andando em meio à troca de tiros, em trajetos que chegam a dois quilômetros", afirma.

O relato de Fernanda ilustra a dificuldade de outros estudantes do complexo que não conseguiram participar do primeiro dia do Enem. Moradores de São Gonçalo chegaram a criar um abaixo-assinado para solicitar ao Ministério da Educação (MEC) que permita a esses vestibulandos realizar a prova na data de sua reaplicação, que acontecerá em 9 e 16 de dezembro. Na tarde desta terça-feira, o pleito já contava com mais de 3 mil assinaturas.

Segundo dados da Fundação Cesgranrio, responsável pela aplicação das provas do Enem no estado, 501 candidatos inscritos e direcionados para os seis locais mais próximos ao Complexo do Salgueiro não compareceram ao exame. O total de inscritos dessas unidades foi de 2.054 candidatos.

De acordo com o edital do exame, a reaplicação é permitida a pessoas diagnosticadas com alguma doença infectocontagiosa na data da primeira aplicação e também em “casos fortuitos” ou acidentes, que serão avaliados individualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao MEC responsável pelo Enem.

Em nota divulgada nesta terça-feira, o Inep esclarece que a reaplicação pode ser solicitada por desastres naturais que comprometam a infraestrutura do local de aplicação, falta de energia elétrica, falha no dispositivo eletrônico fornecido ao participante (quando for o caso) e por algum erro de execução de procedimento na aplicação “que incorra em comprovado prejuízo ao inscrito”. Violência e problemas de Segurança Pública não figuram no comunicado.

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Questionado, o Inep não deu resposta até o fechamento deste texto.

Idealizador do abaixo-assinado, João Pires, morador de São Gonçalo e ex-candidato a vereador da cidade, diz que considera acionar a Justiça caso o Inep não colabore.

"Esses jovens não podem pagar o preço do fracasso da política de segurança pública do Rio de Janeiro. A gente precisa dar dignidade para que eles consigam fazer essa prova", afirma.

Pires também criou um formulário para identificar os estudantes afetados pela operação que aconteceu no domingo. O questionário, divulgado na manhã desta terça-feira, ainda não teve muitas assinaturas, já que o acesso à internet não é fácil para muitos moradores da região.

"Assinei o formulário e a petição, mas duvido muito que vá dar em algo. Estamos na luta. Eu infelizmente não posso fazer mais nada além disso", diz Fernanda. "Tenho muito medo de perder o Enem desse ano e só poder fazer no ano que vem. É uma frustração enorme não poder ter feito no último domingo. A possibilidade de só poder fazer em 2022 chega a desanimar'.

A operação no Complexo do Salgueiro também fechou as portas do Enem para Marcos (nome fictício), de 21 anos. O morador já estuda numa universidade pública, mas gosta de fazer o exame todo ano para testar os conhecimentos. O hábito teve de ser interrompido este ano, quando, por causa da violência, ele preferiu ficar em casa.

"Decidi não pôr a minha vida em risco, afinal não estou fazendo o Enem à vera. Mas conheço pessoas que estão realmente tentando o vestibular este ano. Com medo de perder a prova, elas tiveram de se arriscar na rua. A situação foi muito tensa", conta.

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