Quando uma espessa nuvem de fumaça começou a sair do subsolo do prédio 1 do Hospital Federal de Bonsucesso (HFB), por volta das nove e meia da manhã desta terça-feira (27), o que era um intenso vaivém de funcionários, prestadores de serviços, pacientes e acompanhantes se transformou numa desesperada correria.
Naquela que é uma das maiores unidades públicas de saúde do Estado do Rio, teve início um trabalho de esvaziamento do edifício com incontáveis cenas de improviso: doentes acamados eram levados para o galpão de uma loja de pneus, enfermeiros enrolavam em lençóis e carregavam nos braços aqueles que não podiam esperar a remoção de seus leitos, parentes de pessoas internadas ajudavam a pegar os equipamentos médicos que elas tanto precisavam. Três morreram . Duas estavam com Covid-19, e, no fim do dia, suas famílias ainda não conseguiam acreditar que a luta contra a doença havia sido interrompida de forma tão trágica e castigada pelo descaso. Um homem de 39 anos, que também em estado delicado de saúde estava internado no CTI, teve a morte confirmada no fim do dia.
Não se pode dizer que a tragédia foi uma surpresa. O hospital não tinha certificado de funcionamento do Corpo de Bombeiros . Um levantamento da Associação Contas Abertas mostra que os gastos da unidade caíram 40% desde 2010, passando de R$ 218 milhões para R$ 131 milhões por ano. E não faltaram alertas sobre suas más condições estruturais. Ao fim de uma vistoria realizada em 2019 , por exemplo, técnicos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS) apontaram falhas graves no sistema de prevenção a incêndio e “alto risco de explosão”, por conta do superaquecimento de dois transformadores. No mesmo subsolo onde as chamas surgiram, eles descreveram, em um relatório com fotos, vários problemas no sistema elétrico. Registraram ainda que hidrantes estavam desativados e com mangueiras danificadas.
No início da pandemia, o hospital chegou a ser anunciado como unidade federal de referência no tratamento de pacientes com Covid-19 no Rio. Um de seus blocos foi adaptado para receber os infectados que precisassem de internação. Seriam de 150 a 200 leitos. O plano, no entanto, não foi adiante, por falta de pessoal. Por meio de uma nota, o Ministério da Saúde afirmou que o HFB conta com diversos projetos, alguns em andamento, “para uma série de reformas de urgência”. O órgão lamentou as mortes e destacou que apenas o trabalho de peritos poderá identificar a causa do incêndio — a investigação está a cargo da Polícia Federal. Além disso, a pasta prometeu tomar “as devidas providências para garantir a segurança de todos funcionários e pacientes” e assegurou que “não serão medidos esforços para apoiar o hospital e retomar as atividades o mais breve possível”.
Núbia Rodrigues, de 42 anos, era técnica em radiologia e tinha sido internada há poucos dias. Não resistiu à transferência para o Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari. Uma mulher de 83 anos, cujo nome não foi divulgado até o fim da noite, também morreu. Por volta das 22h, chegou a notícia de que uma terceira vítima havia sido confirmada. O homem, de 39 anos, que já estava em estado muito delicado, havia sido levado para o prédio 2 do HFB e necessitava de cuidados de CTI . Não resistiu ao deslocamento.
Após ser acionado, o Corpo de Bombeiros levou aproximadamente 15 minutos para começar a combater o fogo. A corporação mobilizou 12 quartéis. O comandante, coronel Leandro Sampaio Monteiro, que também é secretário de Defesa Civil, confirmou que o Hospital Federal de Bonsucesso não tem certificado da corporação para funcionar e que recebeu duas multas por falta de condições de segurança. Constrangido ao ser indagado sobre os problemas, ele disse que “se houve um incêndio, alguma coisa estava errada”.
Servidores e pacientes do Hospital Federal de Bonsucesso circulavam por um campo minado não era de hoje. Uma vistoria feita há um ano e meio constatou que havia “risco de curto-circuito, incêndio e inoperância do sistema elétrico” no subsolo da unidade, onde o fogo teria começado ontem. E o problema foi detectado por um órgão ligado ao próprio Ministério da Saúde, que administra da unidade.
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"É um incêndio anunciado, reflexo da precariedade de prédios públicos, que têm fiações elétricas muito antigas. Há um descaso do governo contra esse hospital de alta complexidade", afirmou a presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio, Mônica Armada.
Na inspeção, técnicos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS) também identificaram que havia superaquecimento em dois transformadores da subestação principal do hospital. Um deles chegou a atingir 148,6 graus e o outro, 128,6 graus. Foram verificadas ainda infiltrações, o que, segundo o relatório, poderia comprometer inclusive a estrutura do edifício.
A inspeção mostrou que a falta de cuidado era generalizada. Havia hidrantes desativados com mangueiras danificadas e sem condições de uso. Cabos estavam expostos, e equipamentos estavam obsoletos e em desacordo com normas técnicas. Os peritos também não encontraram sistemas de detecção de fumaça e sprinklers. Por isso, o hospital não tinha licença do Corpo de Bombeiros. Quase dois anos depois, o Bonsucesso continua sem certificação da corporação.
Para Chrystina Barros, pesquisadora do Centro de Estudos em Gestão de Serviços de Saúde da UFRJ, o incêndio no Bonsucesso remete a um histórico de falta de investimentos nas unidades de saúde que precisa ser alvo de investigação.
"Infelizmente, pelo histórico do nosso país, faltam fiscalização ativa e investimentos nas unidades. Mas tudo tem que ser apurado com muita calma, porque é comum que, nesses momentos, a gente responsabilize o gestor local, que fica na ponta. Mas, principalmente numa estrutura pública, sabemos o quanto de burocracia existe para que ele consiga fazer o gerenciamento de maneira adequada", ressaltou.
"A fumaça subiu muito rapidamente através do duto de ar-condicionado. Apesar do caos, os profissionais correram, improvisaram camas com lençóis e retiraram todos", concluiu.
O professor de história e estudante de medicina Fábio Lessa acompanhava a mãe de 62 anos, e a avó, de 92, que trata um câncer. Ainda sem saber como sair do prédio em chamas, Fábio relatou os momentos de medo.
"Ela (a avó) tem câncer e não consegue andar. Qualquer coisa, eu a agarro e desço. Só que se eu descer com ela no colo posso machucar sua coluna", disse. Fábio, a mãe e a avó saíram em segurança.