Foram cerca de quatro horas de espera para iniciar a conversa com o sepultador James Alan Gomes, 34. Durante o intervalo das exumações listadas para aquele dia, ele abriu uma lata de refrigerante, caminhou pelas sepulturas e lembrou do dia anterior.
“Só ontem eu fiz 70 enterros. O corpo tá cansado demais, mas a gente toma um remédio e espera passar”, admitiu. James, assim como outros profissionais do setor funerário, diz que o termo "coveiro" deve ser evitado e prefere ser chamado de "sepultador".
Há sete anos, James se tornou funcionário do maior cemitério da América Latina, o Complexo da Vila Formosa, na Zona Leste de São Paulo. Mas, é há quatro meses que passa pelos momentos mais difíceis da profissão.
As mortes pela Covid-19 em São Paulo mais que dobraram o número de sepultamentos no Vila Formosa. Na prática, a rotina intensa de trabalho trouxe à luz problemas antigos, como a falta de mais sepultadores no maior cemitério do estado.
O Vila Formosa tem cerca de 667 mil metros quadrados, o que corresponde a quase 70 campos de futebol, e é dividido em duas etapas, a 1 e a 2.
Na linha de frente contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2) há quatro meses, os sepultadores do Vila Formosa se queixam de esgotamento físico e mental.
Números do Serviço Funerário contabilizam que entre março e maio foram 4.709 sepultamentos realizados no Vila Formosa, frente a 2.945 no mesmo período de 2019, um aumento em torno de 60% dos enterros.
O estado de São Paulo registrou 3.408 novos casos do novo coronavírus nas últimas 24 horas, totalizando 275.145 pessoas infectadas, segundo anunciou a Secretaria Estadual da Saúde nesta segunda-feira (29). Já o número de mortes causadas pelo vírus chegou a 14.398. No Brasil, já são 58.314 mortes e 1.368.195 casos confirmados.
Na linha de frente no momento mais difícil
Wilker Costa, 44, é sepultador desde 2012 e para ele, não há problema em ser chamado de "coveiro". Zeca, como é conhecido por muitos funcionários do Vila Formosa, acredita que apenas romantizaram a forma de falar, mas a profissão continua desvalorizada.
"Com o tempo não melhorou. As pessoas pensam que somos sujos e bêbados, mas esses mitos precisam ser desconstruídos porque fazemos um serviço público e gratuito à população", destacou.
Zeca considera que a categoria está na linha de frente no momento mais doloroso da crise de saúde, que é o adeus final. Apesar da constante exposição ao vírus, ele afirma que nunca fez o teste para a Covid-19. E garante, nem ele e nem nenhum funcionário do Serviço Funerário de São Paulo.
João Batista Gomes, do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep), que representa a categoria dos agentes sepultadores, diz que a testagem desses trabalhadores é um desafio e cobra da prefeitura e do governo estadual mais transparência com relação aos prazos.
Ele explica que, no início da pandemia, o problema era a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), principalmente para os enterros. "Hoje, depois de muita luta, já temos os aparatos necessários", contou. Os sepultadores usam luvas grossas de borracha verde-azulada, a máscara N95 e uma roupa de plástico branco com capuz.
Exaustão e esgotamento físico
Em rotina de trabalho exaustiva, os sepultadores, que antes faziam cerca de 30 enterros por dia, hoje estimam que o número pode chegar até 80 em um dia caótico.
No último dia 18 de junho, os carros formavam uma fila, na etapa 2 do Vila Formosa, que parecia não ter fim. Em menos de 30 minutos, foram quatro sepultamentos seguidos. O formato era o mesmo. Os veículos acompanhavam a van do serviço funerário com o caixão e as famílias ajudavam os sepultadores a carregar o corpo até o túmulo.
Novo normal
Entre choros e abraços, a despedida precisa ser rápida. Com a pandemia da Covid-19, o novo normal determina que os velórios sejam suspensos para evitar a contaminação. Em menos de dez minutos , os corpos são transportados das vans e as com as pás, os sepultadores enterram mais uma vítima da Covid-19.
Wilker lamenta a forma como o procedimento é feito, sem que a família possa ver o rosto do falecido, mas diz que apenas segue o protocolo da prefeitura. Ele conta que algumas famílias não entendem e ficam nervosas.
"A gente tem que ter jogo de cintura, calma e empatia para lidar com a família nesse momento sensível. As pessoas estão tristes e exaltadas por não ter direito ao velório, não dá tempo para fazer muitas orações. Por isso, muitos nos xingam e até tentam agredir, o nosso trabalho é invisível e também falta sensibilidade da sociedade", lamenta Wilker.
Apesar de estar acostumado com o trabalho pesado, com poucos momentos de descanso, diz que está com a cabeça cansada e o desgaste físico é uma realidade. "Eu durmo pensando no cemitério e acordo com os mesmos pensamentos", contou.
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Falta mão de obra no Vila Formosa
Por conta da pandemia, a prefeitura de São Paulo precisou abrir 13 mil novas valas e comprar novas câmaras refrigeradas para armazenar temporariamente até mil corpos por dia. No Vila Formosa, o maquinário abriu 8 mil covas em áreas que não vinham sendo usadas para sepultamentos.
Um sepultador, que preferiu não se identificar, contou que suas principais tarefas são abrir covas, enterrar, limpar e exumar os corpos, e que apesar do trabalho ter dobrado, o cansaço sempre existiu porque falta mão de obra no local há anos.
O Serviço Funerário Municipal tem 257 sepultadores, mas cerca de 60% deles foram afastados por pertencerem ao grupo de risco . Para suprir a demanda, foram contratados emergencialmente 220 novos coveiros para atender os 22 cemitérios públicos espalhados pela capital paulista. Atualmente, 49 sepultadores prestam serviços no Complexo Vila Formosa, sendo 23 efetivos e 26 terceirizados.
"O serviço sempre foi muito pesado. Cheguei a fazer 80 enterros no dia com essa doença. Eu sempre achei que aqui a mão de obra era pouca, mesmo antes. Por exemplo, a prefeitura encomendou as máquinas para abrir as covas, mas o maquinário não dá conta de refinar e a gente precisa finalizar tudo. A meta é de abrir até 14 covas por dia
, faça sol ou chuva", lamentou o funcionário público.
Acostumado com a rotina cansativa desde que se tornou sepultador, há nove anos, ele diz que precisa encarar os enterros como números. "Não podemos nos abalar todos os dias, ficar pensando no morto, não dá. A gente precisa ficar mais seco e focar no trabalho. Mas ganhamos muita dor na coluna nesse período, chega uma hora que você não aguenta. Mas tem que trabalhar mesmo assim", disse.
No novo normal, a sua escala de trabalho, desde abril, é de segunda a segunda, com algumas folgas. "Fizemos o concurso público para isso, por mais que não seja uma profissão reconhecida e nem fácil de ser exercida por qualquer um. Sofremos muito preconceito porque acham que temos doença, somos julgados pela sociedade que não entende a importância do nosso trabalho. Mas, quem consegue perder um parente e enterrar sozinho?", questionou descrever a importância da sua função para a sociedade.
Adenilson Souza, 47, trabalha no Vila Formosa desde o dia 17 de abril de 1995. Ele diz que o ritmo aumentou por causa da pandemia e a rotina mudou completamente. Para não correr tantos riscos, já que seu trabalho é essencial e não pode parar, ele precisa se higienizar a todo momento, principalmente quando chega em casa, para conversar com a esposa e as filhas.
"Esse é o momento mais crítico da minha carreira, a gente se esgota a cada dia". Com a flexibilização da quarentena em São Paulo e abertura gradual do comércio, ele teme que isso torne o trabalho dos sepultadores ainda mais árduo nos próximos meses.
É também o que pensa o sepultador James Alan Gomes, que agora tem como companheira de todas as noites a insônia. O corpo se adaptou ao serviço, mas a mente ainda não.
A cada dia, ele busca formas de relaxar após o expediente de trabalho. É na igreja que consegue deixar de lado, pelo menos por algumas horas, o estresse da alta sequencia de enterros e exumações que faz por dia. "Já pensei em desistir no início, mas agora quero me aposentar como sepultador porque tenho orgulho do meu trabalho", falou.
Enquanto faz um tour para apresentar cada detalhe do Vila Formosa, Wilker, que conhece cada detalhe daquele cemitério, desde as ruas que deveriam ter sido pavimentadas há décadas até a falta de uma melhor estrutura para armazenar as ossadas, diz que a solução para o gargalo dos funcionários é a abertura de um novo concurso público.
Para ser sepultador municipal, é necessário prestar concurso público, sendo necessário ter, ao mínimo, ensino fundamental."Eles querem terceirizar o sistema, privatizar . E o serviço gratuito que é oferecido à população, como fica?", chamou atenção.
Um trabalhador, que preferiu não se identificar, disse que além de ter poucos funcionários, a estrutura do cemitério não está das melhores porque o Vila Formosa está esquecido. "É só você conversar com os outros sepultadores, precisamos fazer a exumações para enterrar mais gente, mas o local determinado para guardar os ossos já está cheio", disse.
Atualmente, além de uma casa de alvenaria, há também dois contêineres para colocar as ossadas. O número de exumações nos 22 cemitérios da cidade de São Paulo chegou a quase 6,5 mil de janeiro até maio deste ano. Por causa da pandemia, o Serviço Funerário precisou disponibilizar contêineres com capacidade para armazenar 20 urnas.
No cemitério da Vila Formosa, em média, são realizadas 50 exumações por dia e podem ser feitas de forma automática quando a pessoa é enterrada no cemitério público, após três anos.
Os restos mortais são colocados pela família num ossário, com a devida identificação. Caso ninguém da família apareça, o próprio poder público pode fazer a remoção desde que respeite o prazo legal.
Para o sindicato dos servidores, os ossários de alvenaria são a melhor alternativa. "Mas como o serviço é negligenciado, são nesses momentos de crise que os problemas ficam mais aparentes", denunciou João Gomes.
O que diz a prefeitura de São Paulo
Questionada sobre as queixas dos sepultadores, a prefeitura de São Paulo informou que o Serviço Funerário já solicitou junto à Secretaria da Saúde testes rápidos da Covid-19 para os servidores da linha de frente como sepultadores, motoristas e administradores de necrópoles. A gestão municipal, no entanto, não informou um prazo.
A prefeitura também garantiu que dois novos contêineres metálicos foram entregues no Complexo Cemiterial Formosa no dia 24 de junho e estão em fase final de adaptação para acomodar as ossadas de exumações que estão sendo realizadas.
Sobre a contratação de mais agentes sepultadores para o maior cemitério da América Latina, não houve resposta.