Cada bairro de cada cidade tem característica próprias, que os diferenciam dos demais. São Paulo é uma metrópole com população estimada de 12 milhões de habitantes - segundo dados do IBGE -, espalhados por 96 distritos, gerenciados por 32 subprefeituras. Em um cenário como esse, as desigualdades e as contradições saltam os olhos. É o caso da Consolação e de Parelheiros. Os dois são os distritos paulistas com menos e mais crianças.
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Enquanto a média de São Paulo é de 9,4 crianças de zero a seis anos a cada 100 habitantes, a Consolação tem apenas cinco. Já Parelheiros, no extremo sul, ultrapassa o dobro do distrito no centro da capital: a cada 100 moradores quase 12 são crianças.
Os dados são estimativas da população infantil desses locais em 2018, produzidas pela Fundação Seade, com base no Censo de 2010 do IBGE. Eles foram divulgados nesta quarta-feira (12) pelo Mapa da Desigualdade da Primeira Infância 2020 , um levantamento de dados produzido pela ONG Rede Nossa São Paulo (RNSP).
O contraste entre Parelheiros e Consolação pode parecer singelo, no entanto a quantidade de crianças em um distrito impacta as características e necessidades do local. Carol Guimarães, urbanista e coordenadora da RNSP de 36 anos, explica que “ter uma população infantil maior leva a maiores demandas específicas a essa população, sendo necessários mais recursos e políticas voltadas a esse público”. Um número maior de vagas em creches e de pediatras em unidades de saúde públicas são exemplos que ela cita de demandas desses lugares.
Guimarães afirma que a principal intenção deste dado no Mapa da Desigualdade da primeira infância é contribuir para formulação de políticas voltadas para essa faixa etária, levando em consideração as características de cada território. “Ele aponta o segmento da população que o poder público deve se ater no planejamento de políticas públicas”.
A urbanista explica que apenas com o número de população infantil do bairro não é possível afirmar se há uma desigualdade entre um local com muitas crianças e outro com poucas – apenas seria possível com outros números que mostram se as demandas dessas populações estão sendo atendidas.
Contudo, o antropólogo especializado em primeira infância Gustavo Belisario, explica que há um correlação entre pobreza e número de crianças. "Esse é um dado que se repete basicamente em todo o mundo. Os lugares de classe alta e média têm uma proporção de crianças menores do que nos lugares de classe baixa". Ele afirma que famílias com menos crianças conseguem ter mais acesso a empregos e uma mobilidade social maior. "Você ser uma mulher com muitos filhos dificulta sua relação com a empresa", exemplifica.
Belisario afirma que o problema em si não é o número de crianças que um bairro possuí, mas como a sociedade cuida dessas crianças. "Se você tem um proporção maior de crianças na pobreza, você tem uma dificuldade maior de cuidar dessas criança. Você tem um sistema que dificulta esse cuidado". O antropólogo destaca que para um desenvolvimento infantil saudável é necessário apoio familiar e acesso à saúde e educação. "Políticas públicas de forma geral", algo que ele afirma estar em escassez nas periferias. Parelheiros, no extremo sul da capital, não é uma exceção.
Parelheiros: vulnerabilidade social marca a maior população infantil
"É nítida a presença de crianças por aqui, por exemplo: eu não conheço ninguém que seja criança e filho único ao mesmo tempo". A frase é da jovem jornalista Luana Nunes (24), moradora de Parelheiros desde que nasceu. A declaração traça o retrato de um dos maiores distritos da cidade de São Paulo, e vai ao encontro da pesquisa Mapa Desigualdade da Primeira Infância, desenvolvida pela Rede Nossa São Paulo.
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Luana analisa a ausência dos pais na orientação dos jovens como um dos fatores que levam à gravidez na adolescência e consequentemente ao aumento da população infantil no distrito. "Os pais passam o dia todo fora de casa, esse adolescente (que fica em casa) não trabalha, começa a namorar cedo, engravidam e por aí vaí. Aqui tem muita criança cuidando de outras criança para os pais trabalharem", afirma Luana. A jornalista atribui à distância geográfica em relação ao centro comercial e econômico da cidade como um dos fatores que geram a ausência familiar.
Embora a gravidez na adolescência não tenha relação de causalidade com a população infantil de determinada região, pois seria necessário estudar a taxa de fecundidade de toda a população feminina, como aponta a coordenadora de RNSP, Carol Guimarães, Parelheiros desponta na pesquisa como o segundo distrito com maior taxa de gravidez entre as adolescentes. São 16,3 adolescentes grávidas a cada 100 moradores, quando a média da cidade de São Paulo figura em 10,4 e a Consolação tem 2,79% de incidência.
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"O que podemos inferir com esse indicador é que dentre os nascidos vivos nos territórios, a maior proporção de mães adolescentes está em Parelheiros. Além disso, geram efeitos em outras áreas de políticas e também na vida dessas jovens mães, como a evasão escolar, e dificuldades na inserção no mercado de trabalho. Tais efeitos contribuem no aprofundamento das desigualdades nos territórios e podem aprofundar as condições de vulnerabilidade desse grupo etário", destaca Guimarães.
"Aqui não tem muito o que fazer"
Conforme apontou a coordenadora da pesquisa, o número crianças em área de vulnerabilidade social também é um problema que afeta Parelheiros . O distrito tem uma taxa de crianças em situação de vulnerabilidade de 9,9% , em linha com a média da cidade de São Paulo que é de 9,8%, porém a concentração demográfica de crianças no bairro traz outra proporção ao dado. Uma vez que o bairro do Ipiranga apresenta taxa de vulnerabilidade maior do que a de Parelheiros, mas tem uma população infantil quase 30% menor.
"Aqui não tem muito o que fazer. Não têm centros esportivos, ou outros aparelhos socioeducativos. Tem o CEU Parelheiros e mais nada, logo as crianças estão amontoadas em campinhos ou nas ruas para se divertir. Bairro afastado, pouca coisa para fazer, muita coisa para aprender, seja certa ou errada!”, diz Luana.
Agito e decadência do centro afastam famílias da Consolação
Quando Marta Porta, de 55 anos, passeia pelas ruas da Consolação, onde mora, percebe que a região é composta majoritariamente por idosos. Poucas famílias ou crianças cruzam seu caminho. Seus vizinhos, que ela conhece bem por ser presidente da Associação dos Moradores da Consolação, estão, na maioria, na faixa dos 60 anos e moram no bairro há décadas.
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"Realmente temos muita pouca criança". Ela mora na Consolação há 30 anos e conta que desde que se mudou para lá, a região já era marcada por pessoas mais solitárias ou individuais.
"Não sei em que momento começou a deixar de ser um bairro de família", afirma. Ela conta que cerca de 15 anos atrás a Consolação era um bairro tranquilo e sem muitos barulhos. Mas muita coisa mudou e famílias escolheram deixar a região em busca de locais onde houvesse mais tranquilidade.
"Muitas mães com bebês me ligavam desesperadas dizendo que não conseguiam dormir. Essas pessoas foram embora daqui", relata. Eventos culturais – como a Parada LGBT, as manifestações políticas, o carnaval, a virada cultural e até mesmo a festa junina da Igreja de Nossa Senhora da Consolação –, estabelecimentos que funcionam até tarde da noite e as movimentadas avenidas da região afastaram famílias, segundo a presidente da associação de moradores. "Eles lucram com o descanso alheio, eu acho uma sacanagem".
“Tem muita gente fugindo pela falta de tranquilidade. Essa parte da cidade tá ficando muito barulhenta e quem quer um pouquinho de descanso não quer morar por aqui. Principalmente casais que tenham filhos", explica, afirmando que não é um bairro atrativo para famílias.
Comunidade LGBT
Marta também acredita que o fato de o bairro ter uma comunidade LGBT grande afaste casais com crianças. "Eles extrapolam em situações que não são muito agradáveis e isso assusta as famílias". Ela conta que no ínicio das paradas LGBTs em São Paulo, que surgiram em 1997, muitas famílias acompanhavam os trios elétricos e participavam dos desfiles. Mas nos últimos sete anos o cenário mudou. "As pessoas começaram a observar cenas de sexo, muitas drogas, muita bebida e muita briga. E as famílias ficaram preocupadas".
Outros fatores que distanciam as famílias da Consolação são a falta de escolas e os modelos de apartamentos da região. Marta explica que há poucos apartamentos amplos ou com mais de um quarto – e os que existem são de idosos. A maioria dos imóveis são kitnets ou apartamentos de um ambiente, que possuem no máximo 40 metros quadrados. "O tipo de apartamento que temos aqui impede que tenha muitas pessoas morando no mesmo lugar".
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Sobre o futuro da Consolação, e se pode haver impactos negativos em um bairro com poucas crianças, Marta afirma que depende muito da administração que a cidade de São Paulo e a subprefeitura do bairro terão. "Estamos há três administrações em que a deterioração da região central está sendo permanente. Não tem prefeito que esteja interessado que esse pedaço da cidade seja para as pessoas morarem".