Ser ex- morador de rua em um universo onde papelão é terreno, cobertor representa um teto e a indiferença social é rotina se torna uma tarefa quase impossível. Ainda mais quando os laços familiares rompidos dão espaço ao consumo de drogas, a fome e a exposição crescente a violências físicas, sexuais e morais nas calçadas das cidades. Atual funcionária da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo , Eliana Toscano, relata como se sentia invisibilizada pela condição marginal em um lugar em que a população em situação de rua chega a quase 34 mil pessoas. Durante dois anos morando na rua e com uma trajetória de tráfico e consumo de cocaína, ela foi um símbolo da problemática
Leia mais: São Paulo tem mais pessoas morando na rua que população de 457 cidades paulistas
A trajetória de rua de Eliana começou em 2017, nas calçadas da Rua Vitória, na Santa Ifigênia, centro de São Paulo. De família de classe média, formada em Letras, foi professora de inglês por alguns anos na rede privada. A grande paixão, no entanto, era o trabalho com pessoas que não eram vistas pelo poder público nem pela sociedade. Eliana gostava de viver nas calçadas e ruas do centro paulistano, consideradas perigosas devido à concentração de usuários de drogas. Isso, no entanto, não tinha relação com o tamanho da coragem dela, mas com a empatia pela vida que acontece diante de mais de 12,8 milhões de pessoas que circulam em São Paulo . Ainda assim, vida invisível.
“Casei, tive filhas em um relacionamento de 20 anos que era muito abusivo. Pulei fora da união, mas mantive a ilusão de ficar morando junto para terminar de cuidar das meninas. Acabei bagunçando mais o meu psicológico. Ficava na rua com eles [ moradores de rua ], cuidando, mas ainda voltava pra casa duas vezes por semana. Pernoitava com eles com medo de morrerem e eu nunca mais ter notícias. Porque quando um deles some, ou foi morto, ou encarcerado, a última opção é a volta pra família”.
Estar nas ruas passou a ter ainda mais sentido a Eliane depois de Fábio. Ele passou a ser o motivo que a fez não ter vontade de voltar para casa. “Ele é usuário de substância psicoativa. Quando morávamos na rua, eu separava o dinheiro: ‘Esse aqui é para o seu uso e esse aqui é para mim’. Existia uma vivência democrática. Eu não invadia o espaço dele e ele não invadia o meu”. Juntos, fizeram residência na calçada da Julio Prestes, próximo ao Museu da Resistência. Depois, migraram para debaixo do viaduto da Santos Dumont, na esquina com a Rodolfo Miranda. No fim, fixaram a ‘maloca’ (maneira como as pessoas em situação de rua chamam o abrigo em que vivem), na calçada da Duque de Caxias com a Barão de Campinas. Todos os endereços do centro de São Paulo.
Ao mesmo tempo que explica os motivos que a encaminharam para a moradia de rua
, Eliana reforça que a condição é violenta e não pode ser romantizada. Assegura, contudo, que a rua tem mais a ensinar do que tirar das pessoas. “Aprendi com a rua a ter humildade, ter respeito, ter solidariedade. A sociedade não entende nada da rua. Ela só sabe apontar e condenar. E tudo isso é resultado desse sistema capitalista selvagem. Do egoísmo que a gente tem como ser humano, desse negócio de ter, ter, ter e esquecer o ser”.
Rua como refúgio para a ‘loucura’
Está todo mundo no mesmo barco de vulnerabilidade. Hoje você tá trabalhando. Amanhã fica desempregada e não consegue pagar seu aluguel, não consegue comprar seu arroz e seu feijão, você vai para onde? Vai para a rua. E a rua dá um ‘tapa na cara’ da sociedade, porque ela acolhe”. ELIANA
A violência nas ruas vem também da opressão das instituições, segundo Eliana. Com o cargo que hoje ocupa na Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo , ela consegue fazer a ponte rua-poder público. Demonstra que tem os ‘braços curtos’ e a ‘caneta leve’ para conseguir mudar o sistema e se diz exausta diante do que vê no cotidiano. “Eu tô cansada emocionalmente. O bagulho é muito louco. Acabei de voltar da Cracolândia e teve um ataque da Guarda Municipal. É quase todo dia, quase toda hora. E é inadmissível isso que está acontecendo. A situação de rua deve ser tratada como parte da saúde mental, saúde pública. Não deveria ser questão de segurança”.
Enquanto Eliana Toscano falava sobre a importância das questões que envolvem pessoas em condição de rua serem tratadas pela saúde pública e não pelo setor de segurança, um homem descalço, com um copo plástico nas mãos e com aparente embriaguez pediu ‘um troco para comprar algo salgado para comer’.
Pedinte: — Com licença. Não fiquem chateadas comigo. Eu estou muito cansado, com muita dor. Eu precisava muito comer alguma coisa. Semelhante a alguma coisa salgada. Sou cantor profissional e estou sem dinheiro. Achei que ia receber o meu dinheiro, mas não recebi. Por incrível que pareça, não posso desistir, né? Temos que ter fé.
Eliana: — Meu, meu último dinheiro eu paguei um marmitex para um rapaz. Eu tenho umas moedinhas .
Pedinte: — Deixa eu mostrar a música que eu tenho aqui: ‘Home by the sea’, a casa do mar. Eu tô rouco para chuchu, mas olha só — e mostra o papel
Eliana: — Eu só tenho 15 centavos. Juntando, juntando dá.
Pedinte mostra o papel para Eliana: — Cante.
Eliana pega o papel da mão dele, e começa a ler a letra: — ' Home by de sea, Genesis '. Eu não lembro do ritmo
Pedinte: — Cante. Eu [não consigo ler porque] não enxergo direito.
Eliana: — Eu sou formada em letras. Sou professora de inglês.
Pedinte: — É mesmo? Que legal!
Eliana: — Não lembro o ritmo [da música]. Qual é o seu nome?
Pedinte: — Marco Antônio Muniz Alexandrino da Silva.
Eliana: — Você está em situação de rua?
Pedinte: — Não.
Eliana: — Você está o quê?
Pedinte: — Eu estou andando por aí.
Eliana: — Mas você tem uma casa?
Pedinte: — Tenho terreno, tenho família, tenho casa, tenho filho pra chuchu. Tenho nove filhos. Tenho netos.
Eliana: — Mas você está na rua?
Pedinte: — Hoje, nesse momento, estou.
Eliana: — Deixa eu dar um gole nisso aí - Eliana pega o copo das mãos do pedinte. O líquido parecia refrigerante.
Eliana: — Vai fazer seu corre. Vai fazer seu mangueio pra você comer alguma coisa.
Pedinte: — Menina, eu não mangueio não. Não preciso disso não. Eu tô pedindo uma ajuda pra você porque eu quero comer.
Eliana: — Eu sei.
Pedinte: — Toma aqui os seus 15 centavos — tentando devolver as moedas para Eliana.
Eliana: — Não, fica. O Tio Patinhas começou com uma moedinha.
Pedinte: — Ah, mas eu não sou o tio patinhas. Eu sou o Marco Antônio. Sou carioca!
Eliana: — Tá vendo, a autoestima?
Pedinte: — O que eu ganho eu gasto.
Eliana: — Eu sei.
Pedinte: — O cara não tem roupa, eu tiro do meu corpo e dou. Eu sou assim. Assim sou eu. Veja bem, eu tenho sete versões, uma do Zezé di Camargo e Luciano, outra é “Preciso de Jesus Aqui”, e tenho outra versão de Roxette, que chama-se… como é que é… vamo ver se eu lembro.... [e cantarola uma parte de Spending my Time]. A mais recente chama-se “Jamais diga que é o fim”. Eu não sei quem canta, mas é a versão de uma internacional. ‘Sim, jamais diga que tem fim, Deus é maior que tudo aqui’. Você pode não acreditar, mas é isso aí. Menina, não vai fazer falta [os 15 centavos]?
Eliana: — Não, pega, é seu.
Pedinte: — Eu tô rico! — disse, sorrindo.
Eliana: — Opa!
Pedinte: — Vou usar esse dinheiro pra comer. Olha os noinha ali, tudo novinho, baforando tine. Tudo mijão. Eu não sou. Meu filho tem 29 anos, luta boxe, muay thai, está na igreja, quer casar desesperadamente. E eu quero ficar com a tia dele. Que ela é apaixonada por mim e eu por ela também.
Eliana: — Vai na paz, meu querido.
Ao se despedir de Antônio, Eliana volta a reforçar que estar na a rua é mais uma questão de saúde e não devia ser tratada como pauta de segurança. “Então, é isso. É isso o que acontece. Ele, pessoa em situação de rua, que não se assume. Que tem a questão do orgulho, medo de não ser aceito. Dá pra ver. Bipolaridade, ansiedade, a necessidade de falar. Ele anda sem sapato e ele tem esse negócio de ‘eu tenho terreno, eu tenho casa’. Olha, isso daí é consequência do rompimento do vínculo familiar”, reforça.
Você tem fome de quê?
A fome nas ruas é de comida, escuta e afeto. E com isso concordam tanto Eliana Toscana quanto Pedro Antônio Luiz Neto, que migrou de Natal (RN) para São Paulo ainda na infância. A rua foi a única alternativa após ser despejado por não conseguir pagar o aluguel com o salário de técnico em telecomunicação. O vício em cocaína veio por consequência. Sem família ou amigos com quem pudesse contar, passou dois anos e meio na cracolândia. Teve tuberculose e derrame pleural (acúmulo de líquido entre os tecidos que revestem os pulmões e o tórax). Na época, precisou drenar mais de 900 mL do peito por ter dormido na chuva e pelas drogas que consumia para fugir da realidade.
"Eu era anestesiado pelo álcool e pelas drogas. Também era muito revoltado comigo mesmo, por estar naquela situação. Eu arrancava camisa, andava na rua todo molhado. Por ser um cara branco, eu era alvo, achavam que eu era policial disfarçado. O usuário de crack é desconfiado em relação a tudo. Mas depois, de tanto usar crack, fui piorando. Fiquei magro, meus dentes quebraram por conta da droga. Todo dia que eu passava na rua era agredido, acordava sem tênis, documento nunca mais tive. Toda vez que tirava, era roubado”.
Em busca de uma condição melhor, procurou albergues públicos para abrigo e encaminhamentos a tratamento médico. Com o apoio dos assistentes sociais, conseguiu fazer uma ligação para a família, mas foi rejeitado. “Eles disseram que não tinham espaço para mim em Natal. Inventaram uma desculpa e eu fiquei muito mal”. Pedro Antônio conta que tentava sair do vício, mas não tinha motivos para continuar. Todos os dias sonhava com a droga. Nem medicamento, tão pouco internação, fez com que ele largasse as drogas. O ‘divisor de águas’ não veio da medicina, mas do carinho.
Leia também: Mortes de gestantes e bebês em São Paulo aumentam em até 15% em um ano
Foi a partir de um namoro com umas das jovens que dividia as dependências do albergue que a vontade de viver alcançou o técnico em telecomunicações. A namorada tinha acabado de conseguir um emprego em uma loja de departamentos. “Viver a relação me fez mudar. Mas no começo, eu ganhava roupas dela e vendia para usar crack . Foi um processo lento para chegar onde estou hoje. Tive que sair do albergue porque questionei o diretor sobre minhas roupas serem roubadas. Ela disse: 'Você não vai sozinho, eu vou com você'. Isso me trouxe um amor pela vida, porque alguém estava lutando por mim".
Os dois alugaram um ‘quartinho’ e ela suspeitava de gravidez . A partir daí, Pedro, que nunca pensou em ser pai pelo fato de não ter muita atenção do próprio pai e da mãe, passou a sentir que a vida tinha outro sentido. “Foi um choque emocionante, mudou minha vida. Quando minha filha nasceu, parei de usar crack”.
Hoje todo mundo me trata como vencedor. Minha mãe veio em casa, conheceu a neta, chorou. Nosso vínculo foi renovado. Coisas que eu não imaginava que minha família ia me dar a oportunidade de participar, aconteceram. Agora, eles me dão valor." PEDRO
Para disfarçar a dor nas ruas , que o acolhiam durante as horas fora do albergue, Pedro desenhava. E o hábito se perpetua até hoje. Fazia retratos com tinta preta e papel sobre a vida nas ruas. Tempos depois, os quadros foram expostos na Galeria Olido, no centro de São Paulo, com o tema “Das Trevas à Luz”, a partir da ajuda da Associação de Moradores de Rua de São Paulo.
O presidente da organização, Robson Mendonça, é ex-morador de rua , também ajudou Pedro a comprar uma cama para a família nova, além de ter conseguido arrecadar fundos para comprar um baixo. Hoje, Pedro toca em uma banda e está em busca de emprego. Durante o dia, cuida da filha Pietra, enquanto a esposa garante o sustento do lar com o trabalho na loja de departamento.
Para trabalhar é preciso, antes, morar
A busca por emprego durante a vivência de rua representa outra ‘fome’ de quem vive nas ruas: oportunidade. O vice presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, Anderson Puccetti, explica que ao longo dos quatro anos que morou em calçadas, durante dois procurou emprego . Ser dissidente do sistema carcerário e ex-usuário de crack reforçaram as ausências de oportunidade. A buscar um novo horizonte profissional para sair da condição vulnerável, esbarrava no estereótipo montado sobre quem não ter um endereço fixo por falta de opção.
“Eu cheguei na seleção e ouvi falarem que eu estava apto. Pediram para eu levar a documentação. Quando eu entreguei, me disseram: ‘Poxa, desculpa, veio uma pessoa aqui há cinco minutos e conseguimos fechar o quadro de funcionários’. A falta de um endereço fixo é outro obstáculo. Pucetti tentava vagas para ajudante geral em uma rede de hipermercados, atendente, vendedor e garçom. Sem oportunidades em vista, conseguiu ingressar como ajudante na organização de moradores de rua.
Hoje, a residência fixa de Anderson é na própria sede do Movimento. Lá, divide residência com outras 12 pessoas, incluindo sua companheira, também egressa das ruas da capital paulista. “Hoje somos pessoas que tiveram uma trajetória de rua. Todos estamos encaminhados, com emprego ou procurando. Ter uma casa ajuda muito nisso. Dá mais esperança de conseguir alguma coisa pra sair da vida de antes”. Anderson questiona a forma como alguns pronto-socorros públicos e Unidades Básicas de Saúde ( UBSs ) tratam quem vive nas calçadas. Na visão dele, morador de rua é visto como ‘bicho’, que não merece cuidado.
A lição, acima de qualquer dor ou experiência que marcou o caminho de Anderson, é que escutar o outro e entender as necessidades de cada trajetória é mais valioso, em alguns momentos, que uma refeição . “Se você tirar cinco minutos do seu dia e tentar dar palavras de ânimo, possa ser que aquelas suas palavras despertem o choque de realidade que vai ajudar a pessoa [em situação de rua] a buscar um objetivo de vida. Meu papel, hoje, é ajudar pessoas para dar a oportunidade que eu tive desde que cheguei aqui. A vontade é ver elas conseguem através dessas ajudar lutar pelos diretos e trilhar os seus objetivos”.