Há dois anos, Carla Francisco da Silva acordou debaixo de um viaduto com um lagarto em cima dela. Ela estava grávida de sete meses e foi espancada pelo então namorado. A criança não sobreviveu, mas Carla sim e hoje compartilha com dificuldade suas histórias de quando viveu nas calçadas do centro de São Paulo. “Tem seis anos que eu moro na rua e eu já sofri muita violência”, resume.
Ela, uma mulher negra de 22 anos nasceu no Guarujá, no litoral de São Paulo. Veio para a região da capital trabalhar em um restaurante em Osasco quando tinha 16 anos. Para deixar um relacionamento violento, ela preferiu as ruas, algumas das mais agressivas contra mulheres, sobretudo as de sua cor, as do distrito da Sé e seus arredores.
A história de Carla não é uma exceção. A cada 10 mil mulheres de 20 a 59 anos de idade, 803,9 foram vítimas de violência na Sé, de acordo com dados do Mapa das Desigualdades 2019, divulgado nesta terça-feira (5) pela Rede Nossa São Paulo. A média da cidade para este tipo de crime não é baixo: 252,7 vítimas de agressão a cada 10 mil mulheres, três vezes menos que o distrito central.
O levantamento aponta ainda que a Sé, marco zero da cidade, é o distrito com maior número de feminicídios: 8,4 vítimas a cada 10 mil mulheres frente a uma média municipal de 0,9. Além disso, segundo um levantamento da Prefeitura de São Paulo de 2015, esse era o distrito com o maior número de pessoas em situação de rua: 1.311 pessoas vivendo em calçadas, 5,2% da população do bairro.
O especialista em Segurança Pública do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP) Leandro Piquet identifica nos altos índices de violência da Sé fatores ambientais, como a falta de luminosidade e policiamento. “É um (tipo de) agressor que busca uma oportunidade para agredir”, explica.
Carla relata que quando foi vítima de agressão elas sempre partiam de homens, também em situação de rua. Muitas vezes elas vinham quando recusava algum tipo de ordem emitida pelos colegas. A jovem tem clara a maior vulnerabilidade das mulheres. “Para uma mulher procurar ajuda é bem mais difícil do que um homem. Mulher que sofre violência não vai contar”, explica com base em suas próprias experiências.
Ela, que nunca prestou queixa contra seus agressores, diz também que nessas situações a polícia não é de grande auxílio. “Se você está com um companheiro, eles só vão falar para o companheiro parar e vão sair andando”, relata sobre atitude dos policiais que já presenciou.
Segundo Piquet, para resolver situações como essa é necessário desenvolver um atendimento integrado com as vítimas. Para ele, não basta que as mulheres tenham acesso a uma delegacia especializada. É preciso também que a vítima seja acolhida por qualquer agente público, seja um policial, um funcionário em um posto de saúde ou um assistente social.
Além disso, a sociedade privada também tem um papel central, ao olhar do professor. Para ele, funcionários e proprietários de bares, ou outros estabelecimentos do local, também precisam ser capacitados. Dessa forma, saberiam identificar sinais de abusos ou linguagem agressiva e acionar alguma forma de amparo.
A questão racial é outro fator que chama a atenção no distrito. A Sé é o distrito com o maior porcentual de violências raciais de São Paulo. São 13 ocorrências a cada 10 mil habitantes, enquanto a média da cidade é de apenas 1,8 casos. O número é confirmado por Carla: “Tem muita gente preconceituosa na rua. ‘Ah não, é uma negra, pode deixar que ela se vira’”, reproduz.
Recentemente, Carla deixou as ruas com auxílio do novo namorado e do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). Ela afirma que se sente mais forte e empoderada. Aprendeu sobre seus direitos e ajuda mulheres da região central de São Paulo que passam pela experiência que ela deixou para trás. Se tem um desejo? Que o governo atue mais para evitar violências raciais e contra mulheres.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de São Paulo afirmou que “não comenta pesquisas sobre as quais desconhece a metodologia”.