Um país marcado pela corrupção desde sua independência, e sem fé na classe política. Foi nesse contexto que o ator e humorista Volodymyr Zelensky chegou ao poder na Ucrânia. O atual presidente tem sido visto como uma liderança diante da invasão russa comandada por Vladimir Putin.
A mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Ásia Pacífico, Maria Eduarda Dourado, aponta a eleição de Zelensky como um acontecimento "fora a curva" na política ucraniana.
"O Zelensky caiu de para quedas [na presidência] de verdade, e não tinha ideia de que a população ia responder. Tudo começou com uma brincadeira, sabe?", lembra ela, referindo-se à série de TV protagonizada por Zelensky que deu origem a ideia de ser presidente.
No programa, ele interpretava um professor que, de uma hora para outra, acordava como presidente da República. A série chamava-se "Servo do Povo". Não por acaso, nome dado ao partido do presidente nas eleições de 2019.
Para entender como o atual presidente chegou ao poder, é preciso compreender o tamanho da descrença da população ucraniana com a classe política, segundo explica Maria Eduarda.
"Todos os governos foram marcados por corrupção. A gente tem um país onde a política é dominada por oligarcas, que enriquecem muito dentro desse sistema político, e quem está no poder não tem credibilidade com a população. Pesquisas afirmam que 70% dos ucranianos não confiam nas instituições nem na figura do presidente. É endêmico, como se fosse uma doença no país, desde 1991 [ano da independência]", explica.
"É algo muito forte [a corrupção], ouso dizer que mais forte que no Brasil. Temos uma população muito sem crença nas instituições ou nas figuras que elas colocam no poder. Esse histórico seria um dos elementos muito fortes que impulsionariam a ideia de colocar um outsider."
Outro fator que pesou na sua escolha por ampla maioria - ele recebeu 73% dos votos válidos -, foi a adoção de um posicionamento aparentemente flexível em questões que já preocupam a população, como o conflito que ocorreu na região de Donbas, onde estão Luhansk e Donetsk, tomadas por separatistas pró-Rússia em 2014.
"Os ucranianos ficaram cansados desses discursos extremos, entre um presidente que apoia 100% o Ocidente, e se esquece da Rússia, ou então um presidente - como foi Ianukovytch - que apoia a Rússia e esquece das outras relações. É uma população que está cansada de ter que escolher entre um lado e outro. O Zelensky se aproveita disso, é como se fosse uma terceira via", exemplifica Maria Eduarda.
"Ele diz que seria preciso formar um governo mais flexível, onde coubesse diálogos com o Ocidente e com a Rússia. Isso deu um ar de mudança na ideia de política externa que a Ucrânia poderia ter. E é até engraçado, muita gente falava que o Zelensky era muito ingênuo de achar que poderia tratar a Rússia assim, que não teria que ter uma escolha entre o ocidente e a Rússia. Muitos criticaram, mas ele foi firme durante a campanha em uma ideia de Ucrânia flexível", conta ela.
Uso das mídias
Se Jair Bolsonaro (PL) e Donald Trump servem de exemplo como a internet pode impulsionar uma campanha política em um grande país, Zelensky foi além. Segundo a pesquisadora, o ucraniano se valeu dos melhores recursos tecnológicos possíveis para abrir um canal direto de diálogo com a população, o que contou pontos a seu favor, além de manter a agenda de shows como comediante em dia.
"Ele faz o chamado populismo 2.0. Criou uma plataforma conhecida como LIFT, que permitia que a população desse ideias, opiniões, inclusive votar para governador de algumas regiões. É um canal de abertura com a população, direto. Fora mídia social, acho que tem mais um elemento importantes - ele fez os shows de comédia enquanto estava em campanha, com aquele personagem do professor, que fez ele ficar famoso".
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"Servo do Povo"
A série protagonizada por Zelensky durou três temporadas. A última, inclusive, gravada enquanto ele fazia campanha pelo país. O candidato soube se utilizar da publicidade indireta para que fosse bem-sucedido nas eleições.
"Tudo começou com a 'Servo do Povo, e esse é o nome do partido que o Zelensky cria - e consegue 252 assentos no parlamento ucraniano. Com esse número de assentos no partido novo, ele não precisaria de ninguém da oposição para aprovar leis", explica a especialista. Na Ucrânia, com 226 votos, uma nova legislação pode ser aprovada.
Contra oligarcas, mas não tanto
Apesar de ter se apresentado como um outsider, que tinha em seu plano de governo apenas a chance de tornar a Ucrânia um país mais flexível em negociações de política externa, Zelensky também é controverso.
"O que ele mais pregava era a luta contra corrupção. Prometia acabar com os oligarcas, colocou muita gente jovem para compor o governo - o mais velho tinha 49 anos -, mas a campanha dele foi financiada por um oligarca, Ihor Kolomoyskyi [dono do um canal de TV que transmitia 'Servo do Povo']. Não faz muito sentido, mas isso não impactou, a propaganda positiva foi muito forte."
Antipolítica no Brasil
De acordo com o cientista político e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Cláudio André de Souza, a fuga do eleitorado da chamada política tradicional é uma tendência mundial, e tem relação direta com a decepção causada pelos casos de corrupção.
"Se a gente olhar o cenário brasileiro, temos a ascensão de novas lideranças que teriam menos essa visão de políticos profissionais e líderes partidários, com uma visão mais soft do crescimento dessas novas lideranças que teriam como ponto positivo não terem carreira política ou relação com partido", explica.
Ele aponta que após as manifestações de junho de 2013 e a Lava Jato, em 2014, o cansaço das lideranças políticas estabelecidas e a sensação de corrupção extrema abriu brecha para que Bolsonaro se apresentasse como um outsider, mesmo com uma extensa carreira política.
"Bolsonaro deslocou sua liderança política, que era ligada a segurança pública, e teve uma estratégia de falar da agenda da corrupção, passando a sensação de ser um outsider, como se fosse alguém que não estava no sistema político. Ele, no entanto, é um político de carreira. Essa narrativa ganhou repercussão na lógica que ele seria um candidato antissistema, que chegaria lá, que ganharia a eleição para criar uma ordem, ocuparia esse espaço de poder dentro de uma nova perspectiva", afirma.
"Ele criou uma estratégia de comunicação baseada na informalidade, com a estética de alguém que não pertencia ao poder. Veja, os eventos de chinelo, as entrevistas com roupas informais, a lógica que era alguém simples que comia pão de qualquer jeito. É uma estratégia de marketing político para colocá-lo como antissistema. E a sua forma de lidar inclusive, com as agendas, vai nessa ideia."
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